Prestando contas

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Dragar retirou os fones de ouvido assim que  o visitante estacionou. Ele era insolente, mas talvez fosse apenas por causa de sua velhice.

— E então, Dragar Abre Trilhas, convenceu-se?

— Difícil de acreditar. Ele é muito diferente da profecia de Talir. Não tem a chama para liderar.

— Espero que não esteja insinuando que lhe falto com a verdade, como é comum entre seus irmãos apostadores e trapaceiros.

— De maneira nenhuma, Poderoso Dólar. Apenas um idiota deixa de tomar precauções quando faz um pacto com espíritos.

— Então me mostre.

O indicador e o dedo médio de Dragar desenharam símbolos desconhecidos no ar. A figura de chapéu e camisa jeans enfiada para dentro do cinto, batia uma de suas botas de couro de cobra no pneu do corvete. Desconfiava que o Theurge lhe passara para trás. Como fora idiota!

— Sabe, uma vez meu tio Rudolph estava preparando seu cachimbo na soleira de sua casa. Era uma baita fazenda lá na Carolina do Sul. Ele mandou todos os nossos primos para a guerra e ficou lá, sozinho, esperando o primeiro desgraçado corajoso o bastante para lhe tirar dali. – Dragar não interrompeu os gestos. Tentava se concentrar, agora que tinha que ouvir a ladainha do velho.

— Então, na primeira semana, surgiram ladrões. Eles roubavam tudo o que podiam. Mas não se atreviam a roubar meu tio. Ele tinha uma excelente pontaria. Certo dia, um negro, assim como você, chegou acenando um pano branco sobre a cabeça. Queria conversar.

— Que estranho. Seu tio não tinha escravos?

— Tinha. Todos eles fugiram para marchar pelos nortistas. Ele ficou tão intrigado quanto você. Por isso deixou o negro se aproximar.

— E o que ele disse? – Dragar não estava satisfeito. Os símbolos que desenhara não reagiam adequadamente com sua força espiritual. Ao mesmo tempo, precisava manter o Poderoso Dólar conversando para ganhar um pouco mais de tempo.

— O escravo queria um emprego. Uma visão empreendedora e tanto, não é? Pelo menos do ponto de vista de um escravo fugido. A essa altura meu tio estava pouco se lixando para o dono dele. Todo mundo já tinha marchado para a Virgínia e deixado ele lá. Mas ele não podia arriscar. Disse que só podia lhe dar o emprego se ele concordasse em levar um tiro em uma das mãos. Afinal, o escravo não iria muito longe depois disso.

— E ele conseguiu o emprego?

— Sim. Do mesmo jeito que você conseguiu nosso acordo.

As cicatrizes de Dragar coçaram em resposta.

— Duas décadas depois, meu tio Rudolph havia vendido tudo o que tinha e investido na ferrovia. Estava longe de ser rico, mas empregava todo tipo de gente. E adivinhe quem apareceu por lá pedindo emprego?

— O negro.

— E sabe o que meu tio disse?

— Posso imaginar.

— Ele disse que confiava no negro, mas que agora já não era dono da ferrovia sozinho. Tinha sócios. Teria que atirar na outra mão dele. Então o negro gozaria de sua extrema confiança. Vigiaria cada passo dos trabalhadores, enquanto o cavalo de aço americano rasgaria a planície do oeste americano.

Os primeiros sinais de Kael Vagas Palavras, surgiram próximos à fronteira. Ele só poderia ter vindo pelo caminho da usina abandonada. O que significava que devia estar sendo seguido. Mas por enquanto teria que lidar com um problema de cada vez. Precisava de mais tempo.

— Espero que esteja me acompanhando. A história fica mais interessante agora. – A voz do Poderoso Dólar, saiu abafada de dentro do porta-malas do carro.

— Só não me diga que esse negro vai pedir emprego para o seu tio novamente...

— Acho que você está pegando a essência da coisa. – Dragar pensou ter ouvido o clac-clac de uma espingarda.

— Dois meses é tempo o bastante para um homem ganancioso esquecer os tiros levados em cada mão. O fato é que o sócio do meu tio Rudolph estava roubando a ferrovia. Em seu julgamento, ele apontou o negro como cúmplice.

— E ele era culpado?

— Isso não importa. O que importa é que ele pediu uma terceira chance ao meu tio enquanto se escondia nos arredores de uma tribo indígena.

Dragar Abre Trilhas interrompeu os gestos ritualísticos e abriu os olhos. O Poderoso Dólar estava com a espingarda de canos dourados e cabo madrepérola apontando diretamente para sua cabeça. Ele tinha dois dentes dourados e fedia a uísque. Alguém como ele nunca estava satisfeito.

— Então o seu tio o matou. É isso?

O Poderoso Dólar deu de ombros. Ambos sabiam das consequências de se quebrar um pacto com espírito renomado.

Antes que Dragar pudesse responder, uma forte explosão, seguida de um zumbido insistente o mantiveram no chão. Um pedaço do seu maxilar ficou dependurado como carne podre. Ele não conseguia se transformar. Arrastou-se por poucos metros, murmurando uma prece à Gaia. Novamente outro clique, e em seguida, mais uma explosão. A carne de suas costas tinha virado patê. O sangue encheu-lhe os pulmões.

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⏰ Última atualização: Jun 23, 2016 ⏰

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