A visita do Pequeno Príncipe.

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Estava eu mais uma vez no meu micro planeta. Mais uma noite. Não importando se era estrelada ou nublada. Afinal eu não olhava pra cima mesmo. Quando uma pequena figura parou na minha frente, do nada, com um olhar curioso e muito meigo. Bateu na minha mesa e me disse... "Oi!" Eu, num misto esquisito de surpresa e leve susto, respondo: "Oi!" E sorrio. Era um jovem loirinho e bem vestido. Pelo menos eu achei que aquilo que ele vestia lhe caía bem. "Quem é você?" Eu pergunto com um sorriso no rosto. E ele me responde com uma convicção orgulhosa e muito sutil. "Sou o Pequeno Príncipe!" Era óbvio que era um nobre! As suas roupas deixavam isso claro. Pensei naquela mesma hora que ele não poderia ter outro nome. Então ele me pergunta: "Quem é você? Que mundo é esse?" A pergunta não me surpreende. Eu sempre a fazia a mim mesmo. Contudo, diferentemente de mim, ele recebe uma resposta direta. "Este é o meu mundinho do escritor frustrado. É aqui que passo as madrugadas. E você, como chegou aqui?" Ele coça um pouco a sua cabeça... Olha pra trás, pra cima... E responde: "Eu nunca sei muito bem como chego nesses lugares. Eu estou sempre visitando os mundinhos das pessoas. Algumas vezes vou porque quero, onde quero e quando quero. Outras vezes, apareço! Aqui, eu só apareci." Eu fico meio confuso. Pisco os olhos, franzo as sobrancelhas e as arqueio, mas acho que entendo o que ele quis dizer. Continuo a perguntar. "Pelo menos você sabe o que veio fazer aqui?" Ele parece me imitar com os olhos e as sobrancelhas, e responde: "Eu vou nos mundos pra aprender." A minha surpresa aumenta e eu pergunto: "E o que você espera aprender aqui, rapazinho. Veja aqui não tem nada além de mim, dessa mesa, dessa cadeira e desse monte de papel velho empilhado que aos poucos vão sendo comidos pelas traças." Ele sorri muito levemente. Balança um pouco pra frente e pra trás. Olhando em volta, pergunta: "E que papéis são esses?" Eu levanto da minha velha cadeira e ponho a mão sobre uma das várias pilhas de páginas ao meu redor e digo com um pouco da tristeza que acho que ele já viu em mim: "Esses papéis, essas páginas, essas pilhas infindáveis de papel são as minhas ideias e pensamentos, histórias que criei e que aprendi. Algumas são tão antigas que as letras já se apagaram. Outras são tão novas que o papel ainda nem sabe o que é a poeira do tempo. Aqui está tudo que aprendi nessa vida, tudo que eu quero falar antes de morrer." O Pequeno Príncipe arregala os olhos e diz com um tom muito admirado: "Mas são muitas coisas! Como alguém pode ter aprendido tanto e ter tanto a falar? Você não é tão velho." Eu rio. A admiração dele é bem típica dos jovenzinhos que ainda acreditam que os mais velhos são poços profundos de conhecimento. Ele ainda não está na fase de acreditar que já sabe muito mesmo sendo jovem. Eu brinco com ele: "Não é muito. Qualquer pessoa que tentou fazer algo da vida, que tentou encontrar o seu caminho e que errou e errou, mas persistiu em tentar vai ter a mesma quantidade de papel num mundinho desses. E, quem sabe, também vai receber a sua visita! Se tiver sorte..." Ele decide continuar a entender o meu pequeno mundo abarrotado: "Mas, senhor, com tudo isto aqui, como pode ainda ser este o mundo do escritor frustrado? O senhor escreveu muito, leu muito, viveu muito! Aliás! Quais são as pilhas dos papéis escritos e pensados por você e quais são aquelas daquilo que você aprendeu?" Novamente ele se comporta como um jovem admirado! É engraçado ver isso acontecer. Todas as crianças parecem se comportar da mesma maneira. Sempre tão admiradas e curiosas. Tudo as encanta e é fácil ser alvo dessa admiração. O mais divertido disso é que mesmo sendo fácil não é algo do qual se queira abrir mão. Parece que elas te capturam assim. Talvez seja só o ego do adulto querendo ser admirado, talvez seja só o desejo de ver aquele brilho tão doce no olhar infantil, ou só uma sensação de ser criança novamente. Mas, seja como for, é bom saciar a curiosidade delas sobre nós. Enquanto eu pensava a estes respeitos ele me olhava ainda mais curioso. E quando ele me perguntaria no que eu estava a devagar na frente daquele pequeno nobrezinho, eu peço pra que ele não faça tantas perguntas ao mesmo tempo. Rio e penso em qual foi a primeira pergunta. "Ah! Como pode ser este o mundo do escritor frustrado se há tanta coisa escrita aqui? Rapaz, você deveria saber! Fora desse pequeno astro flutuando num espaço infinito, estes papéis de nada valem. Talvez nem existam." Ele não pareceu entender. E repete a segunda pergunta, que parece ter ganhado mais importância que a primeira naquela mente tão ávida por respostas: "Mas onde está aquelas que o senhor escreveu e onde estão aquelas que o senhor aprendeu?" Ajoelhando-me para olhá-lo nos olhos, eu respondo: "Estão todas misturadas! Tudo o que aprendi e tudo que pensei em escrever estão nas mesmas folhas de papel." Ao ouvir isso ele dá um passo pra trás põe as pequeninas mãos sobre o rosto e pergunta quase assustado com o que eu lhe disse: "Mas porque você fez isso? E agora? Por isso este é o mundo do escritor frustrado! Claro! Você não tem papel! Fica usando papel usado. E quando vai escrever percebe que seu papel não é novo. Por isso não pode mostar pra outras pessoas, aí fica chateado e continua escrevendo e escondendo o que escreve! Não pode mais fazer isso, senhor!" Eu sento no chão rindo e emocionado com tamanha inocência. A preocupação dele em me ajudar o levou a indignação. E ele nem tem noção do que seja isso! Mas ao perceber a minha reação ele se enfurece. "Do que está rindo, senhor? Só pode ser da própria atitude, obviamente!" De braços cruzados, peito estufado e olhar nervoso ele espera uma resposta minha: "Acalme-se, Pequeno Príncipe! Não é de você ou da sua pergunta que eu estou rindo. Mas da sua inocência. Na verdade, estou emocionado com a sua preocupação comigo. Entenda bem, é bastante perceptível que você é um menino muito inteligente! Mas veja... Não me faltam papéis. Eu só posso escrever sobre os papéis daquilo que aprendi. Não há outros papéis disponíveis." Neste instante, o jovem nobre e bem vestido, segurou a respiração. "Mas como assim? Você não é capaz de criar? De inventar coisas? De contar histórias novas? Agora, sim, entendi o nome deste lugar! Você não mostra o que escreve porque tudo que escreve não vem de você, vem de fora. Você só copia o que vê! Eu também não mostraria. As pessoas diriam que eu não sou capaz de criar. Por que o senhor não para de fazer isso? Deve haver outros papéis por aí. Vamos procurar comigo em outros mundos! Com certeza existe um 'mundo dos papéis'. Assim, a sua coragem pra mostrar o que escreveu vai aumentar. Anda, vamos comigo!" Dessa vez eu segurei o meu riso e respondi sorrindo levemente: "Pricipezinho, você poderia procurar por todos os mundinhos, em cada vulcão perguntar a cada rosa, e a resposta seria a mesma. Ninguém escreve em papéis que não sejam os da sua própria memória. Cada história escrita, seja real ou ficção, cada música, cada texto, por menor que seja, leva, entranhado nas letras, um pouco da vida do seu autor. É como tentar tirar o que há do pai no filho. Ainda que fosse possível, não valeria o esforço. Pois, o que somos nós, senão parte daqueles que nos trouxeram para o mundo? Tentar escrever sem contaminar as palavras com as suas memórias é como não amamentar um filho. Tanto a criança tem fome, quanto a mãe quer dar o leite. As palavras são vazias sem o autor e o autor não pode se livrar de si mesmo quando escreve." Nesse momento eu percebo uma tristeza no meu pequeno interlocutor. Um olhar que busca por uma lembrança que não existe. Um suspiro por algo que não se sabe o que é. Ele disfarça e pergunta com um tom de voz baixinho: "Então por que o senhor ainda não mostrou o que escreveu? Se sabe que basta aprender para ter papel, por que ainda não li nenhum livro seu?" A tristeza dele vem pra mim. O mesmo suspiro. A mesma busca por uma lembrança que não existe. Eu me levanto. Ponho a mão sobre uma das várias pilhas ao nosso redor. E digo com vergonha e em voz baixa: "Porque nunca consegui terminar nenhuma história. Nada. Nem sequer uma." O silêncio. Nem vento. Nem respirações. Nada. Só os passos de criança na minha direção. Ele diz, enquanto põe a mão suavemente sobre a minha, que parecia afagar a primeira folha no topo de uma das pilhas incontáveis: "Mas o senhor pode terminar. É só continuar. E pare apenas quando terminar." A minha mão que estava sobre folhas de memória e história agora bagunçava os cabelos do Pequeno Príncipe enquanto eu, cheio de vergonha, lhe dizia: "Nobre rapaz, eu também achava fácil. Era só terminar! Simples! Basta determinação. Mas vez após vez, Pequeno Príncipe, eu não terminava. Algumas vezes porque a ideia não me parecia mais tão boa. Outras vezes, eu tinha coisas urgentes a fazer. E assim se passaram os anos. E eu aqui. Sem sair dessa prisão! Parece-me, acho que você me entenderá, que só sairei daqui nos meus sonhos. Como se precisasse dormir para acordar." Eu vi a compaixão nos olhos daquele menino. E me perguntava como é possível que uma criança fosse capaz de sentimentos tão elevados. Eu já conheci adultos que se esforçavam desesperadamente para sentir aquela compaixão que recebi tão gratuitamente daquele menino. Ele parecia ter esquecido a tristeza que há poucos instantes me comoveu. Tamanho desprendimento e altruísmo é buscado por anos de reflexão. Agora entendo que já nascemos assim, nobres de espírito. Capazes de nos compadecer por desconhecidos e de ajudar sem esperar nada em troca. Nesse momento de introspecção eu também esqueci dos meus problemas. Eu também senti uma compaixão que não sabia a quem dirigir. Estava eu com pena de mim mesmo? Será que estou sofrendo pelo Principezinho que viajava sozinho e visitando mundos apenas esperando aprender? E o que eu estava ensinando? Que a vida é um fracasso sucessivo? Que a vida é tentativa e erro que no final vão apenas formas montes inúteis de papéis velhos? Esses pensamentos me incomodaram de uma tal maneira que eu respirei fundo e rompi o silêncio: "Mas deixa tudo isso pra lá, meu jovem amiguinho! Você não precisa ficar preocupado comigo. Afinal, este lugar é apenas o meu refúgio solitário das madrugadas insones. Um dia eu termino uma boa história e mando um exemplar autografado pra você. De graça! O que acha? Você leria um livro meu?" Nem o tom jocoso e alto das minhas palavras mudaram o semblante dele. Ele levantou a cabeça e olhou-me profundamente nos olhos: "Você nunca terminou nenhum. Não vai terminar agora que vim aqui. Quando eu me for, você voltará para a sua mesa, para a sua cadeira e continuará a aprender e a pensar em histórias sem nunca terminar uma sua de verdade." E o maldito silêncio retornou. Ele tinha razão. Com essa brincadeira eu o estava expulsando para não confrontar a realidade que me punha ali, naquele mundo onde conversávamos. E foi a vez dele de tentar animar o ambiente. "Mas eu vou te ajudar! Diga-me, qual dessas histórias gostaria de terminar?" Foi a minha vez de coçar a cabeça em busca de resposta. Eu olho em volta. Vou na direção de uma pilha na qual eu sei que tem uma história que eu gostaria de terminar. Lembro-me de uma outra ainda melhor. Aí outra me vem a mente e eu vou na sua direção. E para cada vez que eu me dirigida a uma das inúmeras pilhas, o Pequeno Príncipe arregalava seus olhinhos como se estivesse ansioso para saber qual foi a minha história eleita. Então eu paro diante da mesa. Olhando tristemente para a cadeira vazia na qual eu me acomodo todas as noites. E o jovem percebe o que estava havendo. "Nem isso você tem, não é?" E mais vergonha saem pelas minhas palavras. "É." Eu não sabia qual daquelas pilhas era a minha preferida. Eu nem lembrava mais qual me deu maior prazer em escrever, ou mesmo pensar sobre elas. Escolher uma, apenas uma, como? Super-heróis, assassinos, amores, vinganças, guerras, viagens espaciais, uma infinidade de coisas. Estava tudo ali, parado. Morto. E eu era o zelador daquele cemitério de natimortos. Eu percebi que o silêncio voltara. Maldito silêncio! Deve mesmo ser sepulcral para ser tão poderoso e capaz de calar até a mais doce criança. Senti um certo medo de olhar para o principezinho. Senti à distância o desespero dele em me ajudar. O jovem que me visitava buscando um mestre, agora estava em agonia tentando ajudar um pobre coitado. Mas quando menos esperava, o jovem rapaz estava arrastando a minha cadeira e se esforçando para sentar-se nela. Ele pegou a minha pena, olhou o papel que estava sobre a mesa e começou a rabiscar. Eu achei engraçado, afinal, a nobreza dele não lhe garantiu a habilidade da escrita. Ele apenas rabiscava. "Veja. Terminei." Eu novamente franzi e arqueei as sobrancelhas sem entender o que ele havia terminado. Ele repete sacodindo o papel: "Veja! Veja! Terminei!" Quando fui para trás da mesa ver o que ele havia feito uma lágrima quase me fugiu pelos olhos. Eram quadrinhos que contavam a chegada dele no meu mundo abarrotado e frustrado. O primeiro quadrinho era ele na minha frente e eu sentado na cadeira. O segundo retratava eu de pé mostrando as pilhas de papel. O terceiro era ele sentado na cadeira rabiscando. E o quarto era ele me dando o papel. "Viu? Eu contei uma historinha. E terminei. É só começar devagarzinho. Uma coisa legal que aconteceu com você e que já tenha terminado! Escrever e mostrar! Pronto!" Os rabiscos deles não passavam de bonecos-palitos. Tudo em linhas simples e meio tortas. Mas eram a coisa mais legal na qual eu já tinha sido retratado. Segurando a folha de papel e profundamente comovido com todo aquele esforço para me ajudar, eu só consegui pensar em pedir desculpas: "Ah! Pequeno e jovem nobre, você veio aqui em busca de aprendizado e tudo que encontrou foi trabalho! E quem acabou aprendendo fui eu, que deveria ser um mestre a te orientar." Ele inclinou um pouco a cabeça para chamar a minha atenção e disse: "Mas eu aprendi muito!" Era eu o confuso e ávido por uma resposta agora. "O que você aprendeu, menino? A sentir pena? A ajudar? Não teve outra coisa que eu poderia ter te ensinado!" Foi a vez dele de rir-se de mim: "Como já pode ter esquecido do que me falou sobre ter um pouco de nós naquilo que eacrevemos?" Claro! Pelo menos isso! Fiquei aliviado quando percebi que ele havia dado tanta atenção e que não sairia dali sem um aprendizado. Mas, surpreendentemente ele continuou: "E aprendi mais!" Foi a minha vez de inclinar a cabeça. Perguntei: "O que mais, rapaz? Só te falei disso." Ele prosseguiu: "O senhor me ensinou que é importante persistir. Que derrotas fazem memórias, que por sua vez viram papéis. E é nestes papéis que eu vou escrever o que eu quero. Nenhuma dessas pilhas é sem utilidade. Mesmo as mais antigas. Tudo que você viveu vira papel. E me ensinou também que uma conversa ensina muito. Muito obrigado, senhor! Aprendi bastante!" Quase sem acreditar no que ele me falou, eu estendo a minha mão para ele. Apertamos as mãos. Eu faço uma reverência com a cabeça, gesto típico de quem fala a um nobre. E digo que o aprendizado maior foi meu. Nesse instante um tênue raio solar surge no horizonte em arco do meu mundinho. E o Pequeno Príncipe o percebe e fica um pouco agitado. "Eu tenho que ir, senhor! Tenho que ir. São esses primeiros raios de sol que me levarão ao meu planeta." Eu sorrio e falo para ele correr. Enquanto ele corre na direção do sol nascente eu repetia: "Adeus, Pequeno Príncipe! Muito obrigado pela visita!" Ele acenava com as mãos enquanto corria e dizia: "Adeus, senhor escritor! Foi uma conversa muito boa! Adeus!" Eu olhava e acenava. Eu sabia que nunca mais o veria. Mas não conseguia ficar triste. Ele correu na direção do sol até que a luz me ofuscou e eu o perdi de vista. Antes que o sol nascesse totalmente eu segui a minha rotina e ajeitei a cadeira perto da mesa. Foi então que notei uma nova pilha de papéis sobre a mesa. Eu tinha uma nova memória. Uma nova lembrança sobre a qual me inspirar. Mas já era a minha hora de partir dali também. Toda essa conversa que ocorreu com a visita do Pequeno Príncipe aconteceu na madrugada de ontem. E hoje de manhã eu terminei de escrever a minha primeira história. Curta e muito simples. É essa que você leu. Escrita nos papéis da lembrança de uma conversa que tive com um menino incrível. E como eu tive o privilégio de ensinar a ele que tudo que escrevemos tem um pouco de nós mesmos nas palavras, como foi ele que me inspirou, tem um pouco dele nessas palavras também. Muito obrigado a você, leitor, e muito obrigado ao Pequeno Príncipe!

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