II. | Resignação

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Relembrando sua expressão quando me encontrara, o olhar assustador que destinara aos meus amigos, a forma como me arrastara para o seu carro e dera partida quando eu mal havia começado a procurar o cinto, os minutos de silêncio e tensão no caminho para sua casa e a quietude pertubadora do lugar quando chegamos, fora a forma como seu corpo tremia e o brilho sanguinário nos seus olhos...

Tendo em vista todos esses e outros fatores, eu deveria ter imaginado o que estava por vir.

Deveria ter imaginado que, ao contrário do que ele prometera, aquela não seria a primeira e única vez.

Deveria ter duvidado quando ele dissera estar arrependido e, sobretudo, deveria ter posto um fim naquele relacionamento quando tudo em relação ao mesmo resumia-se em variações de dias e noites como a primeira após a saída daquela festa.

Mas o medo não me permitiu.

Medo de lutar e a dor ao final ser pior.

Medo de que a minha tentativa de defesa representasse apenas mais um desafio para ele. Ou uma motivação para ser mais agressivo em uma próxima vez.

Deveria ter dado ouvidos aos meus amigos e tê-lo denunciado de imediato.

Deveria ter revidado, deveria ter devolvido com a mesma moeda todos os inchaços e contusões que seus punhos me causaram.

Mas a coragem me faltou.

A coragem de ferir algo que um dia eu jurei amar. A coragem de que talvez, com o erguer de um punho, pudesse findar com o que sobrara dos meus sonhos.

Não deveria ter me afastado desses mesmos amigos que apenas tentaram me ajudar.

Deveria ter dito não às ameaças dele em relação à todas as pessoas que eu amava e ter ao menos pequenos momentos de distração com aqueles que se importavam com meu bem estar.

Mas eu cedi.

Cedi porque no fundo busquei esperanças de que aquele era apenas um pesadelo.

Cedi porque não queria testar os seus limites. Cedi porque fui fraca ao acreditar que, se apenas recuasse, os danos seriam menores.

Não deveria ter mentido para meus pais quando me questionaram sobre alguns desses hematomas.

Deveria ter contado toda a verdade e não ter dito que as marcas roxas eram consequências de ser uma pessoa estabanada e desengonçada.

Mas eu tive vergonha.

Vergonha do fracasso que me tornei.

Vergonha de adimitir em voz alta para minha família que o homem que eu julgara ser o mais perfeito deles, nada mais era que um monstro. Uma farsa.

E que eu me tornara a maior delas.

Não deveria ter levado isso adiante, não deveria ter acreditado nele, não deveria ter perdoado-o todas as vezes que se dizia arrependido e sempre me recompensava com o dobro da força usada na última vez.

Mas eu tive esperanças.

Esperanças de que aquela seria apenas uma fase. Que eram os hormônios da adolescência que deixavam-no descontrolado.

Não deveria ter suportado suas agressões físicas e psicológicas por anos, deveria ter procurado ajuda de imediato.

Deveria saber que os motivos e justificativas que ele afirmava ter eram infundadas, eram apenas desculpas para reproduzir comigo tudo aquilo que ele presenciara em casa.

Mas imaginei que todos os casais fossem assim.

Imaginei que todos tivessem suas fases e aquela era uma delas.

Esqueci dos exemplos que tive em casa. Esqueci que meu pai nunca levantara a voz para a minha mãe, quiçá os punhos.

Esqueci que meus tios e avô prefeririam que seus braços definhassem antes de sequer pensar em ferir uma mulher.

Esqueci.

Ou quis assim.

Não deveria ter vivido anos com a certeza de que era tudo aquilo que ele jogara na minha cara diversas vezes.

Um lixo que merecia todas suas agressões, todos os seus insultos, que não nascera para ser feliz. Um ser desprezível.

Esqueci da alegria com a qual exergava a vida antes de conhecê-lo. Esqueci que fora feliz.

Esqueci. Apenas esqueci e continuei sobre o alvo das suas agressões.

E, sobretudo, não deveria, de maneira ou circunstância nenhuma, nem por todas as agressões, dores, cansaço, desilusões, vergonha, depressões, nem por nenhum motivo no mundo, fosse qual fosse, ter atentado sobre minha própria vida.

Mas foi exatamente o que eu fiz.

O problema quando estamos desesperados e sem esperanças, quanto os dias tristes e sombrios parecem não ter fim, quando o desejo de ser diferente, de ser outra pessoa, talvez uma feliz, é que a normalidade com a qual passamos a encarar a vida e seus infortúnios, a maneira com a qual passamos a enxergar a dor e aceitá-la, torna-se costumeira.

Rotineira.

É como se você aceitasse que não nascera, definitivamente, para ser feliz.

Quando a depressão te assola, quando dias e noites resumem-se em tormentos, quando você passa a desejar o fim de toda dor, o fim do que te causa dor, quando aceita que talvez o problema seja você mesmo e não terceiros; pôr um fim nisso, de uma forma ou de outra, não fará diferença.

Não fará diferença deixar para trás quem um dia te fez feliz. Não fará diferença esquecer o que te fez rir um dia, o que te fez chorar de alegria, o que te fez gargalhar de pura felicidade, quando tudo não passa de dor.

Dor. Apenas isso.

A dor de desistir de você mesmo, comparada a que você sente diariamente, torna-se irrisória.

Apenas mais uma, dentre tantas outras.

A dor da perda de um sonho, de um amor, de uma esperança.

A dor de desistir da vida.

A ÚNICA SAÍDA [CONTO]Onde histórias criam vida. Descubra agora