Seu pensamento embarcara num trem que atravessava um território sombrio povoado por mortos. Lá estava a tia. Morreu de câncer pouco antes do Rildo, depois de muito penar. Lembrou-se do choro das primas, escandaloso alternando gemidos e gritos, que a tia, em seu caixão, devia baixo e tinha levado a vida em tom menor.
Os mortos encenavam tristemente para ele ao longo dos trilhos. Dantas, tia Leda, Rildo, Nina, a colega de faculdade atingida por uma bala perdida ao chegar em casa, próximo a uma favela (Alemã). Era uma moça aplicada, responsável. Na véspera de sua morte, Nina lhe emprestara um caderno para que copiasse uma matéria. Agora não tinha a quem devolvê-lo e sempre que o olhava tinha a estranha sensação de que ela o estava pedindo de volta.
De defundo em defundo, acabou chegando ao mais atingido deles, seu vovô Candinho, que o levava para tomar sorvete na praça, comprava máscaras no carnaval e ria sacudindo a barriga, feito Papai Noel. O velho gostava de comer e apreciava uma boa cerveja. O barrigão revelava sua preferência culinárias, o tutu com torresmo, a dobradinha com paio e imensas feijoadas, que comia com um prazer de dar gosto. Morreu num momento de grande satisfação, depois de um lauto almoço e de um cigarro bem pitado, sem outro aviso a não ser o gesto de levar a mão ao peito. "Como um passarinho", diziam todos sempre que contavam o fato.
Depois do susto, da confusão, das primeiras providências, seus pais se viram diante de mais uma preocupação: o que dizer às crianças quando voltassem do colégio? Elas adoravam o velho, que morava com eles. Deviriam deixar que vissem o defunto? A mãe preferia que os filhos se lembrassem do avô vivo, guardando a alegre imagem do velho bonachão. Já o pai era de outra opinião. Quanto mais cedo se familiarizassem com os fatos da vida, melhor. Morrer era tão natural como os fatos de vida dolorosa, mas firme e fortaleceria. Venceu o pai, que costumava ser mar firme e determinado na defesa de seus ponto de vista.
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O Trem Dos Mortos
Historical FictionNesta estrutura simultaneamente complexa e simples, Izabella Almeida conta uma história de amor e trágicas, em três tempos. História trágica e descritiva e introspectiva, clássica e moderna, realista e fantástica...