Parte Um

727 13 1
                                    

Maldito frio congelante. A respiração de Luke Findley paira
no ar, quase sólida, na forma de um ninho de vespa conge- lado e destituído de oxigênio. Suas mãos estão pesadas sobre a direção; ele está grogue, acordou em cima da hora de fazer
o percurso até o hospital para assumir o turno da noite. Os campos cobertos de neve dos dois lados da estrada são pinceladas fantasmagóricas de azul sob o luar; seus lábios azulados estão quase insensíveis pela hipotermia. A neve é tão espessa que encobre todos os vestígios de galhos espin- hentos, que geralmente permeiam os campos e dão ao lugar uma falsa aparência de calma. Ele sempre se pergunta por que seus vizinhos continuam vivendo nesse ponto tão ao ex- tremo norte do Maine; solitário e frígido, um lugar difícil para a agricultura. O inverno reina durante metade do ano, forma pilhas de neve nos parapeitos das janelas e solta lufa- das de vento enregelantes sobre a plantação de batatas.
Vez ou outra alguém realmente congela e, como Luke é um dos poucos médicos da região, já presenciou a cena. Um bêbado (o que mais há em St. Andrew) pegou no sono sobre a neve e, pela manhã, havia se tornado um picolé humano. Um menino, patinando sobre o rio Allagash, caiu em um buraco que se abriu quando passou pela camada mais fina do gelo. Às vezes, o corpo é encontrado na metade do cam- inho para o Canadá, no encontro do rio Allagash com o rio St. John. Um caçador perde a visão por causa do reflexo da neve e não consegue sair da Floresta Great North; seu corpo é encontrado sentado, recostado em um tronco, a espingarda sobre o colo, sem uso.

- Aquilo não foi acidente, que nada! - Joe Duchesne, o xerife, disse a Luke, desgostoso, quando o corpo do caçador foi levado ao hospital. - O velho Ollie Ostergaard, ele quer- ia mesmo morrer. Este foi o jeito dele de cometer suicídio. - Mas Luke suspeita que, caso fosse verdade, Ostergaard teria atirado na própria cabeça. Hipotermia é um processo lento de morte, dá tempo suficiente para reconsiderar qualquer decisão.
Luke estaciona a caminhonete em um lugar vazio do esta- cionamento do Hospital Municipal de Aroostook, desliga o motor e promete a si mesmo, mais uma vez, que se mudará de St. Andrew. Ele só tem que vender a fazenda de seus pais e, então, se mudará, ainda que não saiba exatamente para onde. Suspira, tira as chaves da ignição e se dirige à entrada da sala de emergência.
A enfermeira de plantão o cumprimenta com a cabeça en- quanto Luke entra tirando as luvas. Ele pendura a parca no pequeno vestiário dos médicos e volta para a recepção. Judy diz:
- Joe ligou. Está trazendo um prisioneiro, quer que você dê uma olhada nele. Vai chegar a qualquer minuto.
- Motorista de caminhão?
Quando há problema, geralmente envolve um dos mo- toristas das empresas madeireiras. São famosos por ficar bêbados e provocar brigas no Blue Moon.

- Não. - Judy está absorta em algo que está fazendo no computador. A luz do monitor reflete em seus óculos bifocais.
Luke limpa a garganta querendo chamar a atenção dela.
- Quem é, então? Alguém daqui? - Luke está cansado de costurar seus vizinhos. Parece que só os desajustados, bêba- dos e briguentos conseguiam tolerar aquela cidade miser- ável. Judy tira os olhos do monitor, cotovelo plantado no quadril.
- Não. Uma mulher. E também não é daqui.
Isso é incomum. Mulheres raramente são trazidas pela polícia, exceto quando são as vítimas. De vez em quando, uma esposa da cidade é trazida após uma briga com o mar- ido ou, no verão, uma turista pode perder o controle no Blue Moon. Mas, nessa época do ano, não há nem sinal de turis- tas. Algo diferente para se esperar esta noite. Ele pega uma prancheta.
- Ok. Que mais temos aqui? - Luke ouve mais ou menos enquanto Judy lista a atividade do turno anterior. Ele volta para o vestiário para esperar pelo xerife. Tinha sido uma noite bem movimentada, mas, agora, dez da noite, está tran- quilo. Não consegue aguentar outro relatório sobrestá casamento da filha de Judy, que está prestes a acontecer, um discurso interminável sobre o preço de vestidos de noiva, serviço de buffet e floristas.

- Diga a ela pra fugir com o noivo. - Luke disse uma vez para Judy, que o olhou como se ele tivesse declarado ser membro de uma organização terrorista.
- O casamento é o dia mais importante da vida de uma jovem - Judy respondeu em tom de zombaria. - Você não tem umvanuromântico no seu corpo. Não é à toa que Tricia se divorciou de você.
- Tricia não se divorciou de mim; eu me divorciei dela.
Ele parou de explicar, pois ninguém lhe dá atenção. Luke senta-se no sofá surrado do vestiário e tenta se distrair com um Sudoku. Mas não consegue e pensa no caminho para o hospital naquela noite, as casas pelas quais ele passara nas estradas desoladas, luzes solitárias queimando na noite. O que as pessoas fazem enfiadas em suas casas por tantas hor- as nas noites de inverno? Como médico da cidade, não há se- gredos que Luke não conheça. Ele sabe de todos os pecados: quem bate na esposa, quem tem a mão pesada com as cri- anças; quem bebe e termina batendo o caminhão num monte de neve; quem tem depressão crônica em razão de outro ano ruim na colheita, sem perspectiva no horizonte. As florestas de St. Andrew são escuras e cheias de segredos; lembram a Luke por que quer ir embora desta cidade: está cansado de saber os segredos dos outros e de que eles con- heçam os seus.

Ladrão De Almas Onde histórias criam vida. Descubra agora