TERRITÓRIO DO MAINE, 1809
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Começarei pelo princípio de tudo, pois é a parte que faz sen-
tido para mim e que gravei em minha memória, temerosa de perdê-la ao longo de minha jornada, no desenrolar infinito do tempo.
Minha primeira lembrança vívida e clara de Jonathan St. Andrew é numa ensolarada manhã de domingo na igreja. Ele sentava-se no fundo, nos lugares reservados à sua família, em frente do salão da congregação. Na época, tinha 14 anos e já era tão alto quanto qualquer outro homem na vila. Quase tão alto quanto seu pai, Charles, o homem que fundara nosso pequeno povoado. Charles St. Andrew fora um charmoso capitão do exército, ouvi dizer, mas, nessa época, já era de meia-idade e tinha a barriga mole dos aristocratas.
Jonathan não estava prestando atenção na cerimônia, mas provavelmente poucos de nós ali presentes estávamos. O culto de domingo podia durar quatro horas (até oito, se o pastor se considerasse um exímio orador), então, quem po- deria honestamente dizer que ficava atento a cada palavra do pastor? Talvez a mãe de Jonathan, Ruth, que sentava ao lado dele. Ela vinha de uma linha de teólogos de Boston e daria um bom sermão no pastor Gilbert se sentisse que a pregação não tivesse sido suficientemente rigorosa. Almas estavam em perigo e, sem dúvida, ela achava que as almas nessa cidade isolada, que ficava no meio do nada, distante das influências civilizadas, estavam particularmente em risco. No entanto, Gilbert não era fanático e quatro horas era geralmente o seu limite; assim, sabíamos que logo seríamos dispensados para a glória de uma tarde maravilhosa.Observar Jonathan era o passatempo favorito das garotas do povoado, mas, naquele domingo em particular, era Jonathan quem observava: ele não disfarçava seu olhar para Tenebraes Poirier. Seu olhar de contemplação não se desvi- ou dela por bons dez minutos, os olhos marotos fixos no rosto encantador de Tenebraes e em seu pescoço de cisne, porém, principalmente em seus seios, que pressionavam o fino algodão de seu corpete cada vez que respirava. Apar- entemente ele não se importava que Tenebraes fosse muitos anos mais velha do que ele e que estivesse prometida a Mat- thew Comstock desde que tinha 6 anos.
Aquilo era amor? Fiquei me perguntando enquanto o ob- servava do alto da frisa, onde meu pai e eu sentávamos com as outras famílias pobres. Aquele domingo só éramos meu pai e eu, o restante da família estava na igreja católica do outro lado da cidade, praticando a fé de minha mãe, que veio de uma colônia acadiana a nordeste. Com minha bochecha encostada no antebraço, observei Jonathan intensamente, como só uma garota apaixonada poderia fazer. A certa al- tura, Jonathan parecia não se sentir bem, engolindo com di- ficuldade e finalmente virando as costas para Tenebraes, que não se dava conta do efeito que causava no filho favorito da cidade.Se Jonathan estivesse apaixonado por Tenebraes, a solução seria me atirar do mezanino da congregação na frente de todos. Pois eu sabia, aos 12 anos, com absoluta clareza, que amava Jonathan com todo o meu coração e que, se não pudesse passar minha vida com ele, preferiria morrer. Sentei-me ao lado de meu pai até o final da cerimônia, o cor- ação martelando em minha garganta, lágrimas se formando no fundo dos olhos, apesar de ter dito a mim mesma que era uma tola por me deixar levar por algo que não fazia sentido.
Quando a cerimônia terminou, meu pai, Kieran, pegou minha mão e me levou escada abaixo para nos reunirmos com nossos vizinhos no gramado comunitário. Este era o prêmio por ter ficado até o final da cerimônia: a oportunid- ade de conversar com nossos vizinhos, relaxar um pouco de- pois de seis dias de trabalho árduo e tedioso. Para alguns, era o único contato com pessoas fora da família em toda a semana, a única chance de ouvir as últimas novidades e fal- atórios. Fiquei atrás de meu pai enquanto ele conversava com dois de nossos vizinhos, espiando por trás dele e tent- ando encontrar Jonathan, torcendo para que ele não est- ivesse com Tenebraes. Ele estava em pé atrás de seus pais, sozinho, com o olhar fixo às costas deles. Claramente queria ir embora, mas era melhor ter desejado que nevasse em ju- lho: a socialização depois do culto durava pelo menos uma hora, até mais se o tempo estivesse agradável como estava aquele dia, e os fiéis praticamente tinham que ser carregados. O pai dele tinha dupla incumbência, pois havia muitos homens que viam os domingos como uma oportunid- ade de falar com o proprietário das terras ou de aumentar sua fortuna de alguma forma. Pobre Charles St. Andrew! Não percebi, até muitos anos depois, o fardo que tinha que carregar.
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Ladrão De Almas
RomanceUma vez que Ladrão de Almas é uma obra de ficção, não imagino que os leitores esperem autenticidade histórica. No entanto, tomei uma liberdade na história que acho import- ante ressaltar: a cidade de St. Andrew, no estado do Maine, não existe e se...