ST. ANDREW, 1811
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Talvez tivesse sido melhor, tanto para mim quanto para
Jonathan, se eu tivesse nascido homem. Preferia ter deixado nossa amizade continuar e, assim, sempre ter Jonathan. Ter- íamos passado nossa vida toda dentro dos limites de nosso pequeno vilarejo; nunca teria passado pelas dificuldades que passei, nunca teria sofrido esta provação colocada para nós dois.
Mas eu era uma menina e, por mais que desejasse, nada mudaria isso. À minha frente surgia a misteriosa transição de menina para mulher, tão assustadora quanto mágica. Quais exemplos deveria seguir? Minha mãe, Theresa, não conseguira me dar os tipos de conselho que eu buscava; ela era recatada e quieta demais para meu gosto; eu não queria ser como ela, queria mais. Queria casar com Jonathan, por exemplo, e não parecia que minha mãe pudesse me ensinar a ser o tipo de mulher que conquistaria Jonathan.
Parecia haver segredos que nem todas as mulheres po- diam saber. Por sorte, havia uma mulher na cidade que os conhecia, uma mulher de quem todos falavam coisas, cujo nome trazia um sorriso ao rosto dos homens (se suas mul- heres não estivessem por perto). Era uma mulher diferente de todas no vilarejo e eu tinha que achar um jeito de fazê-la compartilhar esses segredos comigo.Numa trilha da floresta, escondida à sombra da oficina do ferreiro, havia uma casinha. Se alguém conseguisse notá-la, acharia que era uma extensão da oficina ou um depósito de ferramentas do ferreiro, um lugar para guardar ferro-gusa. Era muito desmantelada e pequena para ser uma casa, mesmo assim, não parecia abandonada e o caminho até a porta da frente ficava cada vez mais batido. Com certeza não dava para mais de uma pessoa morar ali, e a lei vigente con- tra morar sozinho ainda prevalecia no apagar das luzes do século XIX, em nosso gélido vilarejo puritano (porque éramos puritanos, não tenha dúvida disso; os fundadores da cidade haviam crescido nos territórios de Massachusetts e estavam acostumados a misturar religião e governo). No ent- anto, neste ponto do extremo norte, que depois viria a ser o Maine, a única razão para a ordem de não viver sozinho era a necessidade: era impensável que uma pessoa sozinha con- seguisse desempenhar todas as tarefas necessárias e sobre- vivesse nesse ambiente hostil. No entanto, em uma cidade rigorosamente puritana, ninguém podia viver sozinho porque na solidão se pode pecar, fazer coisas que não são de Deus. A ordem contra viver sozinho permitia a vigilância dos vizinhos, mas os cidadãos de St. Andrew valorizavam a inde- pendência e resguardavam sua privacidade com unhas e dentes.
De fato, morava alguém naquela casinha, uma mulher que já passara da época de ter filhos, ainda bela, embora envelhecida. Ela raramente saía, mas quando se aventurava nas ruas durante o dia, os moradores da cidade a olhavam com cautela. Os homens fingiam estar fazendo algo para que os olhos deles não se encontrassem com os dela, e as mul- heres puxavam suas longas saias de lado. Alguns a encara- vam diretamente.Mas, à noite, era outra história. Na escuridão da noite, ela tinha visitantes regulares. Homens, um de cada vez, e, mais raramente, um casal, atravessavam rapidamente o caminho e batiam educadamente em sua porta. Se ninguém atendesse, o visitante sabia que tinha que se sentar no de- grau e esperar, de costas para porta, fingindo não ouvir qualquer som que saísse de lá de dentro. Vez ou outra, os sons da casinha se tornavam conversas murmurantes, de- pois silêncio e, dentro de poucos minutos, a porta da frente se abria para o visitante que estava esperando.
Aqueles que sabiam de sua existência a chamavam de Magdalena. Era o nome que dera a si mesma quando chegara à cidade sete anos antes. Na época, ninguém ques- tionou aquele nome estranho. Ela chegou com um pequeno grupo de viajantes do território franco-canadense e, quando eles seguiram viagem, ela ficou. Disse que era viúva e re- solveu se mudar para o clima mais ameno do sul, isto é, se os moradores de St. Andrew permitissem que ela ficasse.
O ferreiro se ofereceu para transformar seu velho de- pósito em uma pequena casa e as boas mulheres do vilarejo a ajudaram a se acomodar, trazendo-lhe todas as coisas das quais pudessem dispor: um banquinho bambo, um pouco de chá, um cobertor velho. Mandavam os maridos com lenha e gravetos para acender o fogo. Perguntavam o que faria para se manter: bordado, fiação, tear? Era parteira, treinada para curar e amamentar? E ela simplesmente sorria discreta- mente e abaixava o rosto, como se dissesse: "Eu? Que tipo de habilidades teria? Meu marido me tratava como uma boneca de porcelana. Como uma pobre viúva que não sabe fazer nada conseguirá sobreviver no mundo?". As boas mulheres iam embora confusas, cacarejando e balançando a cabeça, sem saber o que dizer, exceto que Deus era o provedor de to- dos os seus filhos, inclusive desta mulher inocente que pare- cia acreditar que encontraria a caridade sem limites nesta cidade rude e solitária.
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Ladrão De Almas
RomantiekUma vez que Ladrão de Almas é uma obra de ficção, não imagino que os leitores esperem autenticidade histórica. No entanto, tomei uma liberdade na história que acho import- ante ressaltar: a cidade de St. Andrew, no estado do Maine, não existe e se...