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HOSPITAL DO CONDADO DE AROOSTOOK, HOJE
A fumaça rodopiava em dois pontos de luz dentro do con-
sultório. Agora, as amarras dos pulsos estão soltas e a prisioneira senta-se com a maca ajustada na posição vertical, como uma cadeira, um cigarro queimando entre os dedos. Duas bitucas, queimadas até o filtro, estão amassadas no fundo de uma comadre sobre a maca entre eles. Luke se re- costa na cadeira e tosse, a garganta raspando por causa da fumaça e a cabeça um tanto zonza, como se tivesse usado drogass a noite toda.
Ouve-se uma batida na porta e Luke fica em pé mais de- pressa do que um esquilo consegue subir numa árvore, pois sabe que essa é a batida obrigatória e de praxe que um fun- cionário do hospital dá antes de entrar. Ele bloqueia a porta com o corpo, deixando-a apenas entreaberta.
O olhar frio de Judy, distorcido pelas lentes dos óculos, analisa-o de cima a baixo.
- O necrotério ligou. O corpo acabou de chegar. Joe quer que você ligue para o médico-legista.
- Está tarde. Diga a Joe que não há necessidade de ligar para o legista agora. Certamente dá para esperar até amanhã.

A enfermeira cruza os braços.
- Ele também pediu para perguntar sobre a prisioneira. Ela está pronta para ir ou não?
Isso é um teste, ele percebe. Ele sempre se viu como uma pessoa honesta, mas ainda não está pronto para deixá-la ir.
- Não, ele ainda não pode levá-la.
lo. Judy lhe lança um olhar tão duro, que parece atravessá-
- Por que não? Ela não tem um arranhão sequer. Rapidamente uma mentira lhe vem à cabeça.
- Ela ficou agitada. Tive que sedá-la. Preciso ter certeza de que não terá reações adversas ao sedativo. - A enfer- meira suspira profundamente, como se já soubesse (não sus- peita, mas sabe) que ele está fazendo alguma coisa horrorosa com o corpo inconsciente da garota. - Me deixe sozinho, Judy. Diga a Joe que ligarei para ele quando ela estabilizar. - Ele fecha a porta na cara dela.
Lanny empurra a cinza em volta da comadre com seu ci- garro aceso, sem fazer contato visual com ele.
- Jonathan está aqui. Agora não precisa acreditar nas minhas palavras - ela diz, batendo a cinza dentro da comadre e indicando a porta com a cabeça. - Desça até o necrotério. Veja com seus próprios olhos.

Luke se mexe desconfortavelmente no banquinho.
- Então, há um homem morto no necrotério, o que prova que você realmente matou um homem esta noite.
- Não, há mais uma coisa. Deixa eu mostrar para você - ela diz, erguendo a manga do avental do hospital e revelando as linhas de um desenho pequeno na parte branca, do lado de dentro de seu antebraço. Ele se inclina para olhar mais de perto e vê que é uma tatuagem grosseira, feita em tinta preta: o contorno de um escudo heráldico com a figura de um réptil dentro. - Verá no braço de Jonathan, neste lugar...
- A mesma tatuagem?
- Não - ela responde, passando o dedo sobre a tatuagem. - Mas é do mesmo tamanho e foi feita pela mesma pessoa, então é parecida, como se tivesse sido feita com alfinetes mergulhados em tinta, e realmente foi. A dele são dois cometas circundando um em volta do outro, com as caudas estendidas.
- O que significam? Os cometas? - Luke pergunta.
- Gostaria muito de saber - ela responde, arrumando o avental e a roupa de cama. - Vá lá e olhe para Jonathan, e então me diga que não acredita em mim.

Depois de amarrá-la novamente de forma muito ineficaz, com amarras raramente usadas em pacientes rebeldes, Luke Findley se levanta do banquinho. Passa pelas portas de vaivém, olhando para todos os lados para se assegurar de que ninguém o veja sair. O hospital ainda está escuro e silen- cioso, somente com algum movimento nos distantes pontos de luz sobre o balcão das enfermeiras no fundo do corredor. Seus sapatos rangem no limpo piso de linóleo enquanto ele se apressa pela escadaria, em direção ao norte, pelo corredor do subsolo que leva até o necrotério.
Durante o percurso, seus nervos estão à flor da pele. Se alguém o intercepta e lhe pergunta o que está fazendo fora da sala de emergência, por que está indo ao necrotério, ele simplesmente dirá... Luke nunca foi um bom mentiroso. Ele vê a si mesmo como uma pessoa fundamentalmente honesta, seja lá o bem que isso lhe faça. Apesar de sua honestidade e do medo de ser pego, ele concordou com a estranha sugestão da prisioneira, porque está curioso para saber se o morto é o homem mais belo já colocado sobre esse planeta e qual é a aparência desse tal homem mais belo de todos.
Ele empurra a pesada porta do necrotério. Luke ouve música (o funcionário noturno do necrotério, um jovem cha- mado Marcus, gosta de ter o rádio sempre ligado), mas não vê ninguém. A escrivaninha mostra que há gente ali (a luminária acesa, papéis espalhados, papel de chiclete, uma caneta sem tampa), mas nem sinal de Marcus.

O necrotério é pequeno, de acordo com as modestas ne- cessidades da cidade. Há uma sala refrigerada para exames mais ao fundo, mas os corpos são guardados em quatro câ- maras frias na parede próxima da entrada. Luke respira fundo e alcança um dos trincos, grande e pesado como os trincos dos caminhões antigos de comida congelada.
Na primeira câmara ele encontra o corpo de uma velha senhora, desconhecida para ele, o que significa que ela provavelmente veio de uma das cidades um pouco mais afastadas do condado. O corpo pequeno e compacto e os ca- belos brancos o fazem pensar em sua mãe e, por um mo- mento, ele é levado de volta à última conversa lúcida que tiveram. Ele havia se sentado ao lado de sua cama, na unid- ade de terapia intensiva, enquanto os olhos perdidos dela buscavam o filho, e suas mãos buscavam as dele, para se confortar.
- Sinto muito por fazê-lo voltar para casa para tomar conta de nós - ela lhe disse; sua mãe nunca se desculpava porque não se permitia fazer nada pelo que precisasse se desculpar. - Talvez tenhamos ficado na fazenda tempo de- mais. Mas seu pai, ele não desistia... - Ela se obrigou a parar, incapaz de ser desleal ao velho homem, tão teimoso a ponto de ter andado pesadamente até o estábulo para tirar leite das vacas na manhã do dia em que morreu. - Sinto muito pelo que isso causou à sua família... - Luke lembra-se de tentar explicar que o casamento deles já estava desmor- onando muito antes de retornar com a família para St. Andrew, mas sua mãe não queria saber de ouvir nada da- quilo. - Você nunca quis ficar em St. Andrew, desde quando era pequeno. Não pode estar feliz aqui agora. Depois que eu morrer, não fique enfiado aqui. Vá embora e comece uma vida nova. - Ela começou a chorar e continuou segurando as mãos dele, ficando inconsciente poucas horas depois.

Leva um tempo para Luke reparar que a câmara ainda es- tá aberta e que ele estava em pé havia tanto tempo que seu peito ficara gelado. É como se pudesse ouvir a voz da mãe em sua mente. Ele sente um arrepio e escorrega a bandeja para dentro da câmara; então, fica parado mais um minuto até lembrar por que tinha vindo ao necrotério.
Encontra um saco para cadáveres preto na segunda câ- mara e, com um grunhido de esforço, puxa a bandeja para fora. Abre o zíper até embaixo, emitindo o som de algo se rasgando, como o desgrudar de um velcro.
Luke afasta o saco e olha fixamente o corpo. Ele já viu muitas pessoas mortas ao longo dos anos, e a morte não faz nada para melhorar sua aparência. Dependendo da maneira como morreram, os mortos podem ficar inchados. Podem ter escoriações e descoloração, ou ficar pálidos e azulados. E há sempre a incontestável falta de vivacidade no semblante. O rosto deste homem está quase branco, como as manchas nas folhas escuras e molhadas; o cabelo negro está emplastrado na testa, os olhos, fechados. Não faz diferença. Luke poderia ficar olhando para ele a noite toda. É maravilhoso, mesmo na morte. Ele é de tirar o fôlego, lindíssimo!

Luke está a prestes a empurrar a bandeja de volta quando se lembra da tatuagem. Primeiro olha por sobre o ombro, caso Marcus tenha voltado, e então se apressa, abrindo mais
o zíper do saco e mexendo na roupa para conseguir ver o antebraço do morto. E lá está ela, exatamente como Lanny disse que seria: duas esferas interligadas com as caudas se cruzando em direções opostas, e os pontos se parecem em tamanho, na qualidade do trabalho manual e até no traço tremido da linha.
Refazendo seus passos pelos corredores vazios até a ala de emergência, Luke se debate com a confusão de seus pensamentos que são, na maior parte, perguntas. São como matéria e antimatéria, um anulando o outro, duas verdades que não podem coexistir. Ele sabe o que presenciou na sala de emergência quando viu a garota se cortar; seria impos- sível, mas aconteceu. Ele tocara no torso dela, antes e depois do corte, então sabe que não foi um truque. Mas o que viu não poderia ter acontecido, não da maneira como ele viu.
A não ser que ela esteja falando a verdade. E agora tem um homem lindo no necrotério, e as tatuagens... Ele tem a sensação de que precisa ouvi-la e deixar-se levar, para variar. Mas ele é teimoso, afinal é um homem da ciência; não está a ponto de jogar para o alto tudo o que sabe ser fato. De qualquer forma, está curioso para saber mais. O médico passa correndo pela porta do consultório da sala de emergência, a energia e o nervosismo dentro do peito como vaga-lumes dentro de uma garrafa, para encontrar a prisioneira acomodada na maca, sob o brilho da fresta de luz e das partículas rodopiantes de fumaça. "Ela poderia ser um anjo excomungado", Luke pensa, "as asas cortadas".

Lanny olha avidamente para ele.
- Então, você o viu? Ele não era tudo o que eu disse que seria?
Luke concorda. Uma beleza assim é o próprio droga. Ele passa a mão pelo rosto, respira fundo.
- Então agora você compreende - Lanny disse solene- mente. - E, se acredita em mim, Luke, me ajude. Me des- amarre - ela pediu, curvando as costas e mostrando as am- arras, seu rosto meigo e infantil virado para ele. - Preciso que você me ajude a fugir.

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