O Reino do Sono

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Bati a porta do cacifo com força.

-É por estas e por outras que nunca emprestas o teu passe, Catarina.

Nem esperei pela resposta dela e segui pelo corredor com os livros na mão. Sabia que ela me seguia, até porque quem estava metida em sarilhos desta vez era ela. Pelo menos esta era nova.

-Eu sei Mariana, mas importas-te de tomar um pouco de atenção ao que digo por um instante? O passe foi para um amigo da prima do António.

Estaquei por momentos e rodei nos calcanhares. Por muito que não quisesse admitir, o facto do António vir a saber que a minha melhor amiga tinha emprestado o passe do autocarro ao amigo da sua prima deixava-me com vontade de dar um daqueles "Sorrisos à menina". Aqueles que as raparigas dão nos filmes para adolescentes, tipo comédias românticas que não sabemos se havemos de rir ou chorar pelas figuras que cada um faz.

Ajeitei a mochila nos ombros, segurando as fivelas/alças com mais força do que o necessário e comecei a balançar devagar.

-Sabes que isso não te tira qualquer tipo de culpa no cartório, certo?

-Claro que sei! Mas sei que o fiz por ti, por isso acho que consigo sobreviver - Sorriu daquela forma afectada que me consegue pôr a rir com demasiada facilidade. Que teatral da parte dela.

- És mesmo idiota...

-Eu? A idiota? Não fui eu que cortei a minha própria sobrancelha com um aparador de pelos do nariz do meu av...

Tapei-lhe a boca imediatamente

-Caso não tenhas reparado, estamos na escola, vulgo documentário da BBC sobre a vida selvagem, por isso, mantém esses pensamentos na tua mente antes que eu tenha que os manter lá por ti. Entendido?

Ela acenou veemente com a cabeça e resmungou qualquer coisa que não percebi e claro, como boa amiga que é, lambeu-me a mão de propósito. Retirei-a da frente da boca dela imediatamente, mesmo a tempo de ver o sorriso angelical, típico de quem é o ser mais culpado à face da terra, a formar-se no seu rosto. Limpei a mão à camisola e segui caminho.

Depois de nos sentarmos nos lugares habituais e arrumarmos o material em cima da carteira, lembrei-me que estava prestes a entrar em território demasiado difícil para atravessar acordada: Aula de geografia.

O problema não era a matéria, mas sim a forma como era ensinada. A professora, mais velha, gordinha e com uma cara de rato, mais parecia uma versão do Gru, o Maldisposto feminina do que uma professora do ensino secundário português. Tinha um hábito gigante de colocar as mãos cruzadas sobre a barriga e ir bem devagar até aos alunos que pudessem estar a perturbar a aula, só para surtir um efeito mais dramático. Depois, como se fosse uma mistura de assobio com um suspiro, perguntava muito baixo:

- "Estás cá?"

O pior é que, sem querer fazer troça das pessoas que falam à "sopinha de massa", ela prolongava demasiado os S's, fazendo soar como se uma cobra estivesse a sussurrar ao nosso ouvido.

Era, no mínimo, perturbante.

Ao perceber que teria que arranjar forma de me manter acordada durante 5 horas e 41 minutos (na verdade eram só 100 minutos), comecei a arrancar pedaços de papel da última folha do caderno, para depois não ter de o fazer quando todos estivessem em silêncio. Técnicas de uma sobrevivente ao Reino do Sono!

Comecei então a escrever o primeiro dos que já se adivinhavam muitos para a Catarina, enquanto a professora apagava o sumário e pedia que abríssemos o livro na página 156: A pesca artesanal. Vamos esquecer que eu alguma vez disse que o problema não era a matéria. Também havia sérios problemas em relação à matéria.

"Os teus pais chatearam-se muito?"

Esperei que a professora se virasse para o quadro para poder atirar o papel para a carteira da Catarina. Mal o fiz, virei-me para a frente e fingi estar a tomar notas do que quer que se estivesse a falar no momento. Será que a pesca da sardinha era assim tão favo...

-Au!

Todos na sala (incluindo a professora) se viraram para mim, mesmo a tempo da tampa da caneta ,que me tinha acertado na têmpora esquerda, me cair aos pés, o som abafado pelo meu mini sussurro-grito.

- Mariana...?

Quase entrei em pânico, mas como diz a sábia Catarina nos seus muitos momentos de glória: "Nunca paniques na frente de um 'setôr". Foi o que eu consegui fazer. Improvisei.

-Au...mento! O aumento da pesca da sardinha pode levar à extinção da espécie, correto?

A professora arqueou levemente a sobrancelha mas assentiu devagar, continuando com a sua incrível explicação de como e porque poderia acontecer o problema que eu, sem saber como, colocara.

Calma.

Eu falara na aula?

Porquê?

E fez-se luz. A TAMPA!

Vasculhei a chão com o olhar e encontrei a bendita tampa. Atirei o meu lápis de propósito para o chão, de forma a ter uma desculpa para me baixar e apanhar o lápis EEE a tampa.

Voltei a sentar-me e, quando me preparava para mirar no atrasado mental que me a tinha atirado, percebi que tinha um papelinho no interior. Puxei e abri o mesmo.

"Conheces um Tomás Barros?"

Gelei. Olhei em volta, tentando encontrar quem fora o remetente da mensagem e descobri o Nuno a olhar para mim com uma súplica de desculpas muda no olhar pela situação em que me tinha metido.
Se era para ser alguém a descobrir, que ao menos fosse ele. Escrevinhei no papel e chutei de volta.

"Infelizmente sim. Era o meu melhor amigo."

O Meu Melhor AmigoOnde histórias criam vida. Descubra agora