Quarto Minguante - Parte 3

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Também gostaria de dizer que vagava durante a madrugada, atrás de uma pobre alma atormentada, que tinha desistido da vida ou que estava cansada da família, do pai autoritário, do emprego chato, da cerveja barata que era o que podia pagar. Só que a verdade não é tão feliz assim. Dificilmente eram essas. Eram chatas demais. Peso demais para minhas pernas pouco generosas. Minha chatice já me era peso suficiente, obrigada.

E com as dos outros tipos, eu acabava tendo um senso de justiça inoportuno, almas que estavam prestes a fechar o contrato que faria com que comprasse a casa dos sonhos, o pedido que mudaria sua vida, com a filha para nascer, prestes a concluir o projeto em que trabalhou por meses e meses...

Era por isso que eu tinha feito um acordo com o destino, tinha ficado dito. Eu disse, que o que pintar eu assino, que Leminski me empreste suas palavras, e assim estava feito. Nada de brigas, senso-de-qualquer-coisa inoportuno, chatices demasiadas. Não adiantava bater o pé, desmaiar de bêbado, jogar as chaves pela privada, tomar algum faixa preto roubado ou comprado na farmácia da esquina com receita falsificada. Nenhuma maneira. Tinha descoberto do pior jeito que as coisas seriam como tinham de ser e eu só podia agir da forma mais fácil e facilitar meu trabalho.

Os faixas pretas perdem o efeito, a caixinha acaba, o efeito do álcool vai embora, e você vai ter de ligar para o chaveiro e sair de casa, cedo ou tarde. Depois de desperdiçar minhas apostas, resolvi me poupar o trabalho e o dinheiro com a coisa toda.

Era simples, aquele ou aquela com quem a coragem não falhasse, com quem o ímpeto surgisse, seria o tal. Sem conversas, ou pelo menos sem longas conversas, sorrisos trocados, nada disso. Não pensava na vida maravilhosa que estava privando a tal pessoa ou da miséria que a livrava. Embora na última hora ninguém quer se livrar da miséria que tem. Acredite.

A dessa noite era uma alma de peso mediano, não era amargurada, nem cheia de traumas, mas já tinha visto algumas coisas na vida. Estava especialmente triste, mas eu tentei não me importar. Repousei seu corpo no cimento frio da calçada e corri alguns quarteirões fazendo o mínimo de barulho que eu conseguia. A menina no telefone chamaria a polícia, e eu não queria estar por perto. Os últimos três quarteirões até em casa, eu caminhei normalmente, ainda sentia a melancolia que a alma dela carregava. As emoções deles sempre ficavam rondando como se fossem minhas, até que eu acordasse na manhã seguinte.

A verdade, é que eu estava conformado, fazia o que tinha de fazer. Não estava disposto nem mesmo a sentir muito. Pegava o que queria e ia para casa. Nada de paradas no caminho, nada de álcool ou sobremesas. Fazia meu caminho de volta para o prédio que chamava de casa. Destrancava a minha porta, tomava água — a da rua nunca é igual a de casa. Às vezes ligava a TV ou olhava o celular. Regava minha planta. Tomava um banho, dependendo do quão sujo eu me sentia. E caia no sono. Estaria de volta para vida normal assim que o sol nascesse. Não nada disso, assim que o despertador tocasse ou minha coragem permitisse.

Ou pelo menos, até que a lua minguasse outra vez.

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