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Comparo-me a uma pessoa prestes a se afogar.

Tenho um fardo impiedoso, o qual exige todas as minhas forças para carregar e do qual não posso escapar. O peso puxa-me ao fundo, fazendo-me revisitar meus piores pesadelos. Posso quase ouvir as lembranças escarnecendo meu desejo de compilá-las, esperando que eu desista. 

Com uma grande golfada de ar, entretanto, aperto a pena no papel, tomando o controle e forçando minha cabeça para fora da água.

Eu prometi.

- Trechos de um diário esquecido -

CAPÍTULO 01

O dia seguia barulhento no mercado de Ontor. Comerciantes querendo ganhar fregueses aos gritos, carroças disputando seus lugares na avenida principal, acrobatas e artistas se apresentando para as crianças em troca de alguns trocados dos pais. A moça suspirou com calor, segurando as rédeas dos cavalos enquanto a irmã comprava a carne para o almoço. O sol subia sem piedade e a temperatura aumentava cada vez mais. Ainda teriam que percorrer alguns quilômetros até o pequeno sítio em que moravam.

Ontor era uma pequena cidade no interior, alguns milhares de habitantes, poucas tecnologias. Ouviam falar de televisões que pensavam sozinhas, telefones tão pequenos quanto a palma da mão que funcionavam como rádios, mas viviam distantes demais de qualquer centro urbano para ter mais que algumas televisões antigas e telefones com fio para os mais privilegiados. Havia poucos anos desde que as estradas de terra batida e desigual começaram a ser pavimentadas. As poucas pessoas mais ricas da cidade sequer eram vistas, andando sempre dentro de seus brilhantes automóveis, buzinando para lá e para cá, sempre em cidades vizinhas.

Aprendiam que viviam em um mundo enorme que podia conter milhões e bilhões de pessoas, divididos em alguns continentes e vários países e reinos: Asven. Para alguém que logo teria lido todos os livros disponíveis na pequena biblioteca municipal, ela se sentia impressionantemente indiferente quanto à possibilidade de conhecer esses tantos outros lugares. Gostava de seu lar em que sabia bem distinguir as pessoas boas das más; deixava as aventuras para as páginas dos livros.

Deixou a mente divagar, olhando um vestido longo e decorado numa vitrine. Respirou fundo imaginando em que lugares as pessoas usariam vestidos tão luxuosos, com saias cheias e corpetes bem definidos. Sentiu a cabeça doer como vinha fazendo nos últimos dias. Pesadelos iam e vinham mesmo quando estava acordada, sonhando com lutas, magia, castelos e sofrimentos sem sentido. Deixou a cabeça pender em uma das rédeas, levemente tonta e sentiu a respiração quente de seu cavalo resfolegando. Sorriu levemente, endireitando o corpo e sabendo que o animal sentia sua inquietação.

— Ary! – A moça se virou, ouvindo o chamado e vendo a irmã mais nova se aproximar. – Tive que comprar a carne de porco, aumentaram o preço do boi de novo.

Nuary respirou fundo e balançou a cabeça.

— Não tem problema, comemos carne de boi na próxima vez.

A mais nova torceu o nariz e colocou o pacote dentro da bolsa amarrada à sela de seu cavalo.

— Para onde, agora? – Ela perguntou. – Temos a tarde livre... – Acrescentou com brilhos nos olhos.

— Para casa, Yphera. – Nuary balançou a cabeça, com um meio sorriso.

A mais nova suspirou, montando no cavalo e observando sua irmã com uma expressão emburrada. Nuary soltou uma risadinha, sabendo que Yphera esperava quebrar a rotina ao menos uma vez. Asven era um mundo inteiro aguardando ser descoberto, cheio de cantos escondidos reservando grandes coisas para os que se aventurassem às fronteiras. Yphera sempre falava de como queria conhecer o mundo, ir um pouco mais além, arriscar um pouco mais, ávida por qualquer coisa que lhe desse emoção. Nuary revirou os olhos discretamente. Se seguisse as vontades de Yphera, Nuary sentaria nas pedras quentes da praça do mercado e aproveitaria os shows dos itinerantes até o dia terminar, ou passearia pelas lojas luxuosas experimentando vestidos que nunca poderiam comprar.

A Coroa e a SombraOnde histórias criam vida. Descubra agora