Meu primeiro tudo

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Conheci o Cadu ainda criança; ele morava na frente da casa de titia e, sempre que vinha visitá-la, eu ficava na janela do quarto dela olhando as crianças brincarem no quintal. Ah, como queria brincar com elas, parecia tão divertido, mas titia nunca deixava. Ela falava:

— Aquela raça metida a besta não é gente pra você se misturar não, aquilo tudo lá come acém e arrota filé.

Titia era sempre assim: comparava tudo com comida.

Quando completei dez anos e mais uma vez passava uma temporada com ela, fui convidada para o aniversário de 12 anos dele. Sua mãe, dona Ezalba (não riam, mas o nome é esse mesmo e ainda ela falava com todo orgulho que era a mistura dos nomes de suas avós, Elza e Elba), minha futura ex-sogra, foi encomendar salgados de tia Selma e acabou me convidando para ir à festa de seu filho Carlos Eduardo, falando que fazia questão de nossa presença. Quando ela saiu titia disse:

— Agora não tem jeito, vamos ter que ir, senão esse "tender amarrado" vai espalhar que fizemos desfeita, mas ela só deve ter nos convidado porque não tinha ninguém para chamar.

Eu nem liguei para aqueles comentários... Queria tanto ir que não me importava. Pedi para a titia me comprar uma roupa, e ela chegou em casa com um vestido amarelo e branco. Nossa, era um horror! Mas, como não tinha nada melhor, foi o que usei.

Fui à festa parecendo um girassol; além disso, o penteado que titia fez em meus cabelos acabou despencando para o lado. Fiquei quietinha, somente observando tudo, quando uma menina cheia de pintinhas vermelhas no rosto se aproximou e me chamou para brincar:

— Oi, meu nome é Mel, e o seu?

— Paloma.

— Vem, preciso de mais uma menina pra completar o jogo ─ falou, me puxando.

Ela fez com que eu me sentasse em uma rodinha; e, no meio, estava o Cadu sendo girado. Quando ele parou na minha frente, todos gritaram:

— Pera, uva, maçã ou salada mista?

E ele respondeu:

— Salada mista.

Em seguida, todos gritaram:

— BEIJA! BEIJA! BEIJA!

Tiraram a venda dele e o empurraram na minha direção. Sem que eu tivesse tempo de correr, Cadu me deu um selinho. Fiquei ali sentada muito envergonhada e guardei na lembrança aquele que seria o meu primeiro beijo.

Os anos foram passando e minhas visitas à casa de titia tornaram-se mais frequentes, conforme o tratamento de mamãe se prolongava. Nós morávamos em Piracicaba, aquela mesma da música. Papai foi transferido para lá antes de eu nascer e mamãe, já grávida, foi morar com ele. Mas assim que nasci, ela, aos vinte anos de idade apenas, foi diagnosticada com lúpus eritematoso sistêmico e vivia doente; mal podia cuidar de mim e, para piorar, na minha cidade não existia tratamento adequado. Foi tia Selma quem conseguiu vaga para minha mãe aqui no Hospital das Clínicas. E eu ficava com titia em São Paulo, enquanto mamãe se tratava.

Minha mãe faleceu quando eu tinha 14 anos. Todos falavam que ela tinha sido uma guerreira, que lutou contra a doença, mas eu não queria saber de nada disso; eu só imaginava como seria dali para frente, quando eu completasse 15 anos, me casasse ou tivesse filhos e ela não estivesse lá para me acompanhar.

Acabei vindo morar definitivamente na casa de titia em São Paulo porque papai se casou logo em seguida com uma viúva perua que tinha três filhos adolescentes, que me olhavam como se eu fosse a salsicha de um cachorro-quente.

Foi aí que tudo começou: eu ficava sentada no portão de casa todos os dias, esperando o Cadu chegar do colégio. Cada dia conversávamos um pouquinho mais; parecia que ele realmente entendia minha dor e me consolava. Um dia ganhei um beijinho no rosto; depois um abraço, ;em seguida, um selinho; até, enfim, darmos nosso primeiro beijo de verdade. Confesso que, no começo, achei um pouco nojento aquilo de língua e saliva, mas, aos poucos, ele foi me ensinando e acabei adorando beijá-lo.

Não via a hora de contar a novidade para a Mel, prima dele; nós somos até hoje como carne e unha, ou unha e carne, nunca entendi direito esse ditado.

— Mas vocês estão namorando, então? ─ perguntou Mel enquanto se esticava toda para se alongar.

— Humm, não sei.

— Então, acho melhor você perguntar.

E foi o que fiz; só que ele respondeu que nós estávamos somente ficando e que era para deixar rolar, sem pressão.

Os dias passaram-se, os meses mudaram, as estações revezaram-se, até que um dia, quando eu já estava com 17 anos, Cadu disse que não aguentava mais ser deixado na mão; eu realmente tinha o sonho de casar virgem, tudo por culpa de titia que sempre proferia:

— Você deve guardar sua joinha e só deixar poli-la quem tiver um grande amor para lhe dar.

Aí, quando a coisa ficava quente, vinha aquela voz grossa da titia na minha cabeça e me enchia de dúvidas.

A Mel me incentivava a resolver logo a questão e dizia que não era para eu reclamar caso Cadu entrasse em outra "joalheria", uma vez que tinha muita bijuteria por aí se achando diamante.

Então, resolvi contar para ele do meu sonho de casar virgem e toda de branco, mas Cadu falou que daria na mesma, já que um dia realmente isso iria acontecer e que não fazia sentido esperar. E lá se foi minha joinha para polimento...

Finalmente, ele assumiu para todos que éramos namorados. Os anos foram passando e titia nunca escondeu sua antipatia pelo Cadu; e dona Ezalba continuava trocando meu nome, me chamando de Pâmela, mas eu nem ligava, somente esperava o dia em que entraria de branco na igreja e ele estaria lá no altar me esperando.

Ao completar oito anos juntos, entrei em uma paranoia porque todos que conhecíamos estavam ficando noivos. A gota d'água foi quando Mel ficou noiva do João, dando um jantar super-romântico para a família (e eles só namoravam há dois anos!).

O Cadu perguntou o motivo de minha tristeza, e eu quis saber se ficaríamos noivos também; ele respondeu que não fazia sentido copiar os outros.

Porém, no dia dos namorados daquele mesmo ano, ele me buscou na faculdade e, ali dentro do carro, colocou uma aliança de noivado em minha mão direita. Fiquei tão feliz, mas tão feliz, que nem liguei para a falta de romantismo e continuei sonhando com o dia em que finalmente seríamos marido e mulher.

Só que quando se formou na faculdade de ciências contábeis, Cadu falou que deveríamos esperar que ele concluísse a especialização em auditoria e que eu me formasse. Quando isso aconteceu, ele pediu mais um tempo para que se firmasse no emprego. Assim que se tornou um executivo de sucesso, resolveu abrir um escritório de prestação de serviços em auditoria fiscal e falou que deveríamos aguardar a empresa dar lucro.

E agora esse dia chegou, completamos quatorze anos juntos, e ele disse que poderíamos começar a organizar tudo do jeito que sempre sonhei para casarmos daqui a dois anos.

Eu só não contava que teria uma lambisgoia no meio do caminho e que estragaria minha espera!

Estarei Aqui - DegustaçãoOnde histórias criam vida. Descubra agora