Lei de Murphy

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Andei por tanto tempo sem direção, até me esqueci da Mel, então começou a me faltar o fôlego e minhas pernas começaram a doer. No meu impulso de distanciar-me de tudo, saí sem carteira, documentos, dinheiro, celular; e ainda titia devia estar, além de preocupada, uma arara comigo.

Já era tarde da noite, eu estava perdida, esgotada, humilhada e sem um pingo de vontade de voltar para a realidade que me esperava.

Estava sentada agora em uma praça bem iluminada, contornada por uma pista de corrida, poucas árvores, alguns aparelhos de ginástica e, em frente, havia uma quadra pouco preservada, onde alguns rapazes jogavam algo parecido com futebol. Após algum tempo reconheci, pela bola pontiaguda, que se tratava de rúgbi.

Fiquei ponderando minhas opções:

A - Poderia me atirar de uma ponte, mas tinha medo de altura.

B - Jogar-me na frente de um carro, mas com minha falta de sorte, poderia ficar toda quebrada e viva.

C - Afogar-me no rio Tietê, mas era capaz de cair em um banco de areia e ainda ganhar uma bactéria.

Descartei todas as opções que envolviam remédios, armas, facas, cordas, sangue e resolvi ficar bem viva, pois não daria esse gostinho para eles e mais essa tristeza para tia Selma.

Então passei para minha última opção:

D - Exterminá-los! Ah... Essa começava a me agradar. Imaginei várias formas de fazer picadinho deles, mas como era uma boa samaritana, fiquei com dó do bebezinho a caminho, da minha tia que teria que me visitar na cadeia e até da cobra da minha ex-sogra. E descartei essa possibilidade também.

Cheguei à conclusão de que a única coisa que poderia fazer era usar as armas que tinha para conseguir uma pequena vingança. No dia seguinte, iria ligar para todas as costureiras, lojas de aluguel, floristas, buffets, salões de festas, igrejas e até juízes de paz para boicotar a festa dele. Como esse ramo era pequeno, conhecia e me relacionava bem com todos; seria fácil conseguir aliados. Eles que se casem em Las Vegas, naquelas capelas cafonas com um cover do Elvis em final de carreira, cantando uma música com playback.

Não fazia ideia de qual bairro estava, mas bem próximo, visualizei algumas construções e um movimento grande de pessoas ao redor.

Um senhor idoso passeava com um cachorro — lindo, de pelagem amarela —, que era muito maior que ele; sempre tive vontade de ter um cachorrinho, mas como muitas vezes os salgados eram feitos na cozinha de casa, titia não deixava, alegando que pelos e comida não dariam certo, ainda mais com uma dona atrapalhada como eu.

O senhor deu algumas voltas, se sentou ao meu lado e ficou com o olhar perdido no horizonte, enquanto o cachorro se deitava sobre seus pés. Tentei me distanciar, pois não queria companhia, e só então percebi que ele era deficiente visual. Permaneci quietinha, para não ser notada, somente tentando acalmar minha respiração.

— O que te aflige, menina? — perguntou o senhor, interrompendo o silêncio.

— Como sabe que sou mulher?

— Um perfume tão doce e suave só poderia vir da melhor obra-prima realizada por Deus!

— Ah, senhor, que lindo! E como soube que tem algo me afligindo?

— Menina, na minha condição, nós aprendemos a desenvolver sentidos que passam despercebidos por quem tem a dádiva de enxergar. Pude sentir pela cadência de sua respiração e pelos suspiros contidos do choro retido.

— Já gostei do senhor! Mas respondendo à sua pergunta, acredito estar em uma má fase.

— Qual sua graça?

— Ah... Faço graça sem querer, sabe? Sou um pouco atrapalhada!

— Não, minha menina, quis perguntar qual o seu nome.

— Ahhhh, Paloma — respondi um tanto envergonhada.

— Bonito nome, Paloma! Então, se aceita o conselho de um velho homem, as fases ruins são necessárias para darmos valor quando as boas acontecem! Aprender a valorizar as pequenas coisas boas da vida!

— Então, as coisas boas estão passando a galope por mim!

— Menina! Quanto tempo faz que não experimenta a areia sob seus pés; ou parou para ouvir o canto de um passarinho no meio das buzinas da cidade; ou ainda sentiu o aroma das plantas e da terra depois de um dia chuvoso?

— Senhor, com minha falta de sorte é capaz de tropeçar nessa areia, derrubar o passarinho e cair de bunda nas plantas!

— Menina Paloma, você não perdeu o humor, que é o mais importante! Agora me conte, o que te faz acreditar nessa má sorte?

— Sabe, parece que sempre sou deixada de lado! Mamãe faleceu, papai me abandonou e agora perdi o grande amor da minha vida, que vai se casar com outra e será pai de um filho que não sairá do meu ventre!

—Se sente abandonada? Mas sua mãezinha deve ter cumprido sua tarefa na vida! Quanto a seu pai, se sente saudades, é só procurá-lo, talvez esteja tão envergonhado que prefira a omissão. E quanto a esse tolo rapaz que casará com outra, ele realmente era o amor da sua vida?

— Acredito que sim! E nunca mais vou me permitir sofrer desse jeito!

— Eu encontrei minha preciosa companheira quando já estava cansado da vida, dos vários amores e paixões. Mas quando a vi, não tive dúvidas de que ali seria minha morada, onde encontraria a paz que precisava! E assim foi, vivemos felizes trinta anos juntos. Ela era linda em todos os sentidos, me completava! Quando perdi a visão, ela me fez enxergar o mundo de outras formas.

— Nossa! Vocês estão juntos ainda?

— Não, infelizmente, ela também já cumpriu sua tarefa na Terra; faz dois anos que a perdi! No início, foi como um buraco aberto no peito, mas depois entendi que todos temos um propósito na vida que precisamos cumprir; no caso da minha esposa, ela realizou tudo com maestria, me deu dois filhos lindos, fez todos à sua volta feliz e agradeço por ter tido o privilégio de amá-la!

— Que coisa mais linda! — falei emocionada com sua devoção.

— E tem mais, menina, tenho certeza de que, se nada deu certo da forma como você esperava até hoje, foi porque o destino está preparando algo grandioso e seu grande amor verdadeiro ainda está por vir!

─ Agradeço muito ao senhor por ter passado sua experiência; me sinto até melhor agora! Foi um verdadeiro anjo!

Inclinei-me para lhe dar um abraço, então o cachorro se agitou e como diz aquela teoria: "Se alguma coisa tem a mais remota chance de dar errado, dará"! Somente tive tempo de proteger o senhor, me colocando na frente da bola, que escapou velozmente da quadra e me atingiu com a parte pontuda bem no meio da testa. Caí grogue, sentindo uma dor latejante na cabeça, nauseada, e o cachorro começou a lamber meu rosto.

Algum tempo se passou — minutos, não sei — e percebi um movimento ao meu redor: vozes, luzes... Consegui distinguir um macacão azul e laranja, olhos verdes e uma frase:

— Senhorita, de novo?!

Estarei Aqui - DegustaçãoOnde histórias criam vida. Descubra agora