O Dom

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Existe muito no mundo que é desconhecido para a maioria das pessoas, e para quem tem conhecimento, as respostas nem sempre são claras. No final, o que existe nesta vida e o que existe para além dela? Essa era a minha questão muito antes de me deparar com o paranormal. Todos os domingos, quando entrava na igreja vestindo as melhores roupas que tinha, questionava-me sobre aquilo que efetivamente se passava, sem saber o que era realidade e imaginação. Agora, ao escrever este conjunto de reflexões – o livro de pensamentos que passarei à minha neta – compreendo melhor a realidade, a minha vida.

Nem sempre fui o que sou agora. Por mais que as pessoas digam que sempre fora estranha. Eu não sabia a diferença até chegar à grande cidade. Os meus pais eram nómadas, viajando com o circo, executando o seu espetáculo de trapézio e deixando-me maravilhada com a fluidez com que eles saltavam e voavam durante segundos. Naquele meio, ninguém me via como diferente deles. Era apenas uma criança com uma imaginação fértil e que dizia ver sombras passando e ter sonhos estranhos com pessoas que nunca conhecera, porém aqueles que eu conhecera nas cidades viam-me como uma aberração ou uma charlatã. Foi quando conheci o Fletcher que tudo mudou.

Os espíritos tiveram um lugar importante na minha vida. Quando criei raízes na cidade do meu marido, não tinha dúvidas que as coisas continuariam iguais. Aquilo que eu sentia não iria desaparecer só porque a família do meu marido desejava que ele tivesse uma esposa 'normal' – independentemente do que o que essa palavra significasse. Agora que penso, nem sei porque estavam eles preocupados, apenas a minha querida neta herdou o meu dom.

Desde que eu a vi pela vez quando ela tinha horas de vida, que senti o seu poder. Os espíritos eram atraídos pela sua aura complexa e magnética. Quando ela abriu os olhos pela primeira vez e me deparei com o mistério que eles guardavam soube que ela seria alguém importante, apenas não esperava o quanto. Finalmente, quando ela veio até mim com questões que em tempos foram semelhantes às minhas, estava comprovado aquilo que sentira e, principalmente, estava comprovado para a minha filha. Por mais assustados que todos estivessem, aquela criança estava destinada a grandes feitos.

Os espíritos sempre viveram connosco, caminhando lado a lado com os seres vivos. A sua essência prendera-se ao mundo terreno devido a assuntos por resolver ou a morte violenta. Cabe a nós, seres humanos com o dom, ajudar essas almas a seguirem o seu curso natural. Por vezes, eles são atraídos para quem tem a habilidade para lhes dar paz, outras vezes deparamo-nos com eles sem esperarmos. Há muito que me conformei com a minha vida e espero que, ao ler este livro, a minha neta tenha alguma paz e se sinta menos só no seu tormento.

As minhas questões continuam. Não sei o que existe para além deste mundo terreno. Eu sinto as energias cósmicas e as energias das entidades para-humanas – quer sejam humanos com dons, quer seja espíritos – contudo não vejo as ondulações no mundo. Os meus sonhos são claros mas, mesmo assim, são um mistério que tenho de adivinhar sempre que acordo. Não sei exatamente o que as coisas significam até obter mais pistas, deduzir ou até o espirito falar comigo diretamente e sem rodeios.

A minha neta não é assim. Ela vê o que eu não vejo e ouve o que eu não oiço; e acima de tudo, ela sente muito mais do que eu sinto e as suas barreiras mentais têm de ser tão elevadas que o desgasto é demasiado. Tenho medo por ela. Que avó não teria? Ela vive fugindo do seu dom, com receito que este a possessa por completo. Sempre que falo com ela, sinto como se uma parte da brilhante e sorridente menina que vira crescer se tivesse perdido na escuridão; vítima daquilo que vê diariamente.

O dom para ela é uma maldição. Por mais que a compreenda, rezo a Deus que ela consiga sobreviver até encontrar o porto seguro, pois a família não é suficiente para a ajudar. Que o mundo a abençoe e a proteja, sabe bem Deus que eu fiz tudo o que podia para a ensinar e que continuarei a fazê-lo até ao dia da minha morte. Este livro talvez a ajude a entender como eu me sentia e como me sinto todos os dias. Ela não está sozinha na jornada, basta abrir as portas do seu coração e olhar para o futuro.

– Elisheba Mishra

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