Ajeito um pedaço de carne em meu garfo e cubro com uma porção de arroz. Não decidi se quero que a carne disfarce o gosto do arroz — com proteína extra, carunchos — ou que o arroz disfarce o sabor da carne de origem questionável. O que importa é não morrer de fome, eu acho.
É engraçado como de repente, no meio de um jantar solitário e desagradável, você se lembra de uma piada que ouviu há anos e começa a rir como um idiota. Acabou de acontecer comigo... e a piada nem era boa.
Em uma viagem à Espanha, o brasileiro vai almoçar em um restaurante e pede a especialidade da casa. Ele come tudo, sem deixar vestígios da deliciosa comida em seu prato, e pergunta ao garçom:
— Amigo, que carne era essa que eu comi?
— Testículos do touro que morreu ontem na tourada, senhor.
— O quê?! — pergunta o brasileiro — Eu comi as bolas do touro?
— Sim, senhor. É a nossa tradição e uma grande honra!
No dia seguinte, emputecido por ter comido as bolas do touro, mas com água na boca sempre que pensava na iguaria, ele volta ao restaurante:
— Por favor amigo, a especialidade da casa.
Depois de alguns minutos o garçom traz o prato e, novamente, o brasileiro come com voracidade.
— Estava uma delícia! — diz ao garçom — Mas desta vez os testículos estavam bem menores.
— É verdade, senhor. — concorda o garçom — Nem sempre o toureiro ganha a tourada. Ontem foi dia do touro.
Dia do touro... João contava as piadas mais babacas, mas eu sempre ria.
Era um bom amigo, o João. Estudávamos na mesma classe da faculdade e morávamos na mesma república. Mesmo num momento desses, lembrar de uma das suas piadas aliviou a tensão. Os últimos meses foram uma bosta para mim, como têm sido para todos, eu acho. Não é possível que haja alguém de bem com a vida depois de toda a desgraça que a Febre Vermelha trouxe para o mundo. Todas as pessoas que eu conheci estão mortas ou se tornaram um deles, os infectados que perambulam pelas ruas atrás de algo para comer, de preferência carne humana.
Maringá, onde eu moro, não era uma metrópole como Curitiba, porém era bem desenvolvida. Tinha uns quatrocentos mil habitantes, universidade de ponta e tudo mais, então quando a coisa começou a ficar feia, os moradores da região se iludiram com a ideia de que uma cidade desse porte estaria melhor preparada para lidar com a crise. Talvez essa lógica funcionasse se estivéssemos sendo assolados por terremotos ou furacões, mas a Febre teve um efeito devastador na capacidade do Estado de fazer alguma coisa, pelo simples fato de que ele funciona através de pessoas. Depois de uma ou duas semanas de epidemia, ninguém mais trabalhava. Independentemente de quão importante fosse sua função, se você não estivesse morto ou infectado, estava cuidando de parentes doentes com a Febre ou simplesmente teria medo demais para sair de casa. Merda! Nem os bombeiros tinham contingente para apagar o fogo que se alastrava por aqui. O mesmo acontecia com a polícia e os hospitais. Tudo foi para o buraco tão rápido que as autoridades não tiveram chance de reagir.
Na última vez que consegui falar com meus pais, eles disseram que iam ficar na capital e que eu devia continuar aqui, pois viajar seria muito arriscado. Alguns dias depois, queria ligar para saber como eles estavam, porém já não havia sinal de operadoras de celular ou telefone fixo. Talvez tenha sido insensibilidade da minha parte, mas as notícias de pessoas morrendo, caos e desespero não eram novidade — apesar das proporções absurdas —, agora ficar sem comunicação com o mundo todo? E esse foi o primeiro baque que me fez perceber a gravidade da situação. Depois disso foi a televisão, internet, banho com água quente, delivery de pizza... qualquer tipo de conforto me parece agora uma lembrança de outra vida.
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Dias Febris (da serie Febre Vermelha)
HorrorApós um acidente de navio na Baixada Santista, um vírus se espalha pelo litoral paulista transformando seus hospedeiros em pessoas violentas, de olhos vermelhos e fome insaciável por carne humana. Com a rápida disseminação da doença e a agressividad...