capitulo 2

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   Quando criança, o pesadelo eram fundamentado pela espera, era sustentado pela comprovação de uma
traição. Uma queda da sua fé nos homens. Na verdade, de um único homem. O modelo para todos os outros.

Tudo voltava com o volume caudaloso
sem fim, mareando o passado, trazendo
de volta uma dor náufraga. Mais um homem que caía de seu panteão interno. Poucos estiveram lá.
O seu pai foi o primeiro a despencar. No início, o pai era uma ideia colocada em cima de um pedestal. A
projeção de todas as expectativas sobre os homens. Ao menos era para ela. Um ser mitológico, como aqueles heróis que ela tanto ouvia nas suas histórias. Por vezes, ela achava que no armário ele tinha uma armadura e um cavalo no lugar de roupas. Ele vinha no meio de seus pesadelos resgatá-la dos seus medos, da sua dor e da sua falta.
Falta? Sim, o seu pai como tantos personagens que animavam os seus dias, que preenchiam suas histórias, era uma foto que ela guardava. Lembrou-se da foto que, por uma ironia ou duas, ou apenas por uma generosidade qualquer – isso ela nunca entendeu muito bem –, ele o seu pai, nessa única foto que ela carregava muitas vezes dentro da própria roupa, estava em pé, muito elegante, com um traje de gala. Era o príncipe do seu conto de fadas.
Trancava-se em seu quarto como       
qualquer princesa a ser resgatada e, para
não estar muito só, escrevia histórias.
Muitas delas! Primeiro, livros
rabiscados com cores e sem cor.
Depois, vieram as palavras. Então, as
palavras viraram páginas, as páginas
deram à luz a lugares e pessoas que
viraram sentimentos. As histórias cresceram e também a sua própria.
A sua mãe – bem... – A sua mãe era
quem a acudia nas noites de pesadelo.
Era quem dava vida aos livros com a
voz que ela tanto precisava ouvir. Era
com quem esquiava no inverno. Era
quem trabalhava na Prefeitura e
sustentava a casa e seu mundo.
Lembrou que faziam bonecos
sustentados por neve e montavam
árvores sustentadas pelo Natal. Herdou
o gosto das tortas e bolos nos domingos
depois da igreja. Eles sustentavam as
emoções bagunçadas. A sua mãe era a fada e a bruxa. Aquela com quem brigou
por espaço e que realizou desejos,
aquela que disse “não” mesmo sentindo
por isso. Quem segurou junto a ela
trancos da vida, desilusões, notas
baixas, realidade. Uma heroína que foi
homem e mulher e que deu de si toda a
força dessas figuras para supri-la.
Lembrou que, quando jovem, ainda
na escola, sentia-se um tanto
desengonçada e desproprocional. Usava
óculos, aparelho e não era muito
popular.
– Ei, quatro olhos. – Ela fechou, não os quatro, mas dois, e respirou
fundo. Sabia de quem era aquela voz:
Renan, o imbecil capitão do time de
futebol. Francie andou rápido, um pouco
encolhida, torcendo para a parede
engoli-la. Mas quem a engoliu foi a
cadernada que tomou na cabeça. O
impacto não foi muito forte, mas o
tranco do corpo pelo susto foi o
suficiente para levar os óculos para o
chão. Ela lembrou o que vinha a seguir.
Abaixou resignada com o que
aconteceria.
“Por favor, que ele me deixe em
paz. Por favor, Deus.” Ela só queira sumir. Colou os joelhos no chão e sentiu
o empurrão. Só não caiu de cara porque
esperava por ele e colocou as mãos
antes do tombo. Ouviu o coro de
gargalhadas ecoar pelo corredor.
– O que foi, Francesca? Seus seios
são tão gigantes que você não aguenta
mais se sustentar?
Ela colocou os óculos e o pouco de
orgulho que restavam na cara.
Levantou... e, merda, o cara era alto.
Respirou fundo e disse:
– E você, Renan? Deve ter o pau
tão pequeno que precisa humilhar uma mulher para sentir-se mais homem. – Ele
ficou vermelho de raiva. Ela nunca
entendeu por que o idiota continuava
fazendo isso, semana após semana,
semestre após semestre, era sempre a
mesma coisa ridícula.
Nunca entendeu, até o dia que
Renan entrou no clube de literatura,
deixou o cabelo crescer e tentava ser
simpático de um jeito meio atrapalhado.
– Eu estou louco por você, Francie.
Sempre fui.
Renan foi seu primeiro namorado.
Ficaram juntos por oito meses, ela estava pronta para entregar tudo a ele.
Foi Judy, a sua melhor amiga, quem
contou que Renan dormia com uma
dezena de meninas da escola e ria dela
pelas costas. A escola quase inteira
sabia. Foi uma época difícil. Foi quando
resolveu que nunca mais se apaixonaria
por homem nenhum. Ela passou a odiar
os homens, todos eles.
Lembrou que na adolescência tinha
um rosto mais bonito do que feio, lábios
que ela achava grandes demais e uma
cor de cabelo meio apagado, um tipo de
loiro acinzentado. Uma cor que para ela
parecia mais cinza do que loira. Olhos verdes sempre escondidos atrás dos
óculos. Como quase qualquer
adolescente, tinha vergonha do seu
corpo. Recordou, com um sorriso, que
fazia um bom trabalho para escondê-lo
atrás de roupas largas, camisetas
rasgadas e calças também recortadas.
Francesca, conforme crescia,
cansava-se de esperar por seu pai que
nunca chegava. Lembrou-se da espera.
Esperou-o em todos os seus
aniversários. Em todos os Natais. Em
todas as Páscoas. Em todos os
réveillons. Em todas as apresentações
escolares. Em todos os dias de S. Valentim. Em todos, todos os feriados.
Esperava, nem que fosse uma carta; um
cartão apenas; um telefonema. Lembrou
que ele nunca chegava e que, por isso,
deixou de ser o herói. Deixou de ser
muito cedo. Converteu-se na tirania da
falta.
Aos poucos, ela se esquecia da foto
dele, que ficou mais amarela, desbotada
e enrugada de tanto levar junto ao corpo.
Lembrou-se do clube de literatura da
escola e também do teatro. Lá, fez as
suas principais amizades.
Entrou de cabeça no dia do seu aniversário de quinze anos. Foi quando
resolveu se esquecer de vez do pai. O
que sabia dele era muito pouco para
manter qualquer pessoa viva. Sabia que
era um crítico de cinema muito
conhecido e que escrevia no jornal mais
conceituado de Nova York. Sabia que
tinha uma família e que tivera outra
filha. – Essa era a certeza de que, por
algum motivo oculto, o seu pai não quis
a ela. Não que não teve vontade ter
filhos, mas apenas... não a quis.
Lembrou que no dia em que fez
quinze anos trancou-se no quarto e
resolveu matar o seu pai. Abriu a caixa em que guardava todas as matérias de
jornal que por anos recortou. As
matérias que o mantinham. Ela rasgou
todos os recortes surrados de abrir.
Todas as fotos de revistas ou jornais
vincadas. Todo o pouco que havia do
pai em sua história. E não porque era
pouca história, foi fácil fazê-lo – Não –
foi muito difícil. Ela chorou por horas, e
quando chegou ao último item da caixa,
aquele que ela guardou para o final, pois
doeria demais, Francesca não conseguiu.
Não conseguiu rasgar a única foto real
dele. A foto com o traje de gala. Não
conseguiu. Ela quis rasgar, mas foi incapaz. Sempre achou que ele, o seu
pai – Antonio Andretti –, tivesse
deixado aquela única foto para ela.
Então, guardou-a no fundo da caixa.
Provou ser incapaz de matá-lo. Sentiu-se
fraca. Lembrou que naquele aniversário
jurou que nunca mais esperaria por ele.
Fez isso porque não aguentava mais a
ausência; porque não aguentava mais
esperar; porque se sentia fraca por
continuar desiludindo-se a cada dia.
Francesca limpou as lágrimas por
ter que matar outro homem. Ela não tinha
mais 15 anos, tinha 26. Porém, a dor que
sentia trazia a certeza de que dor não mede idade. Afundou mais o rosto no
travesseiro molhado. Ouviu no fundo da
memória a sua mãe entrar no quarto.
Recordou do quarto em que cresceu –
papel de parede rosa com listras creme.
As sapatilhas de balé dividiam o chão
com All Stars batidos. As bonecas
deram lugar a fotos de amigos, pôsteres
de bandas de rock e de peças de teatro
que ela queria assistir. Sentiu o cheiro
do chá de maçã que sua mãe fazia, ela
trazia um acolhimento com cheiro de
fruta e calor de dentro para fora. Sentiu
saudades do acolhimento. Foi a voz de
sua mãe que puxou as recordações.
   
    – Francie, meu bem! Está há horas
chorando. Desculpe, sei que não gosta
que entre assim no seu quarto, mas é o
seu aniversário de quinze anos e,
querida... Por favor, o que posso fazer
para que você não sofra mais por isto?
– Eu matei ele, mamãe – disse entre
soluços. – Sei que é impossível fazer
isso de verdade, pois ainda tenho o seu
sobrenome e parte dele se mistura com
meu sangue. Mas juro, é a última vez
que choro por isso – soluçou. – Sabe,
acreditei, até hoje, que quando fizesse
quinze anos, ele apareceria com flores e
diria que sempre pensou em mim e que nunca deixaria de estar presente ao
menos neste dia... É uma data especial,
não é, mamãe? É uma data que toda
menina deveria ter um pai a quem amar.
Um pai que dissesse que crescer é algo
mágico e que jurasse lhe proteger, não
mais dos monstros de dentro dos
armários, mas dos meninos. – Deu uma
risada sentida e enxugou os olhos com
as costas da mão. – Mas seremos
sempre nós duas, não é? – ela respondeu
sozinha: – Hoje morreu a última gota de
esperança de que ele recordasse, de que
ele ao menos pensasse em mim, nem que
fosse um pouquinho..

ENTRE O AMOR E O SILÊNCIOOnde histórias criam vida. Descubra agora