Ouve-se na rua deserta o barulho ritmado do salto. Já passa de duas da madrugada e não há ônibus em funcionamento. Nas calçadas, somente moradores de rua enrolados em cobertas. O ritmo se mantém e as pernas magras se movimentam persistentes. Carmen masca um chiclete já gasto. Procura uma lixeira, desvia seu caminho e cuspe lá o doce, que atravessa as grades e cai no chão. Mesmo tendo caído, em seu pensamento já fizera o importante: jogou na lixeira. Volta ao seu trajeto enquanto mexe na pequena bolsa, de onde pega um cigarro do maço já quase vazio e também o isqueiro. Fita o lenço em seu braço, onde o sangue já não mais escorre. Quando chegar no apartamento fará um curativo melhor. Ela acende o cigarro e puxa a fumaça, aliviada. Seu olhar está distante e sua expressão feliz. Sopra contra a luz amarelada de um poste, formando uma nuvem à sua frente.
Da fumaça surge um rosto. Carmen se assusta, pois sua mente vagava distante. A expressão de surpresa dá lugar ao medo: é madrugada e o perigo se faz presente. Um jovem loiro se faz visível, sorri e pede o isqueiro. Apesar de não estar mal vestido, qualquer interação com desconhecidos de madrugada é suspeito. Desconfiada, ela pega desajeitada o isqueiro da bolsa. Os olhos do homem seguem suas mãos e apercebem o torniquete. Após acender o cigarro, o loiro a pergunta sobre o braço. Ela apressada diz que não é nada demais, mas pela insistência, ela descobre o lugar. O homem, surpreso, se oferece para ajudar com o curativo, mas Carmen afirma que não seria necessário.
Após fitar o homem de bela aparência os passos recomeçam, o homem anda ao lado. Ele continua a puxar assunto, porém Carmen responde monossilabicamente. Está cansada de pessoas de má índole que procuram afetá-la de alguma forma. O caminho é longo e, depois de tanto andarem, o loiro faz sua última tentativa de aproximação: a convida para comer em algum bar. Ela está faminta, então aceita. Não demora para acharem um lugar, onde Carmen senta-se com postura e pede um refresco e pastéis. Estão numa pequena lanchonete, ocupada somente por eles e os empregados dali. O homem também come e pede cerveja. Inicialmente ela não se abre, mas por fim conta sobre suas experiências daquela noite. Conversam longamente acerca do preconceito e da necessidade da luta pelos direitos. Carmen também bebe e deixa de lado a cautela: ele parece uma boa pessoa.
Conta paga, eles saem do lugar já mais felizes. Devido a bebida parecem ter uma amizade antiga. O destino de ambos é na mesma direção, por isso continuam juntos. Conversam alto, empolgados e sorriem muito um para o outro. O apartamento está próximo e Carmen lamenta ter de se despedir. O clima da conversa imediatamente muda para timidez, com poucas palavras, enquanto os passos se tornam mais lentos. Agora estão diante do prédio estreito. Ela aponta: mora no terceiro andar. Se aproximam, se abraçam e a mão dele desce até o quadril. Os lábios se unem. Após o desenlace, ela pega ansiosa a bolsa, que apoia na perna e procura a chave. Demora um pouco até achar. O homem loiro a abraça por trás e cheira seu pescoço onde ainda está seu perfume. Ela abre a portaria e então sobem os degraus de mãos dadas. Subindo a escada do segundo andar, param e se beijam mais uma vez. Quando termina o beijo, sobem com mais pressa ainda. Chegam ao apartamento e a chave está na mão. O loiro escora na parede com o braço erguido e a olha sorridente. Carmen abre a porta.
O primeiro cômodo ao entrar é a sala, que está na penumbra. Carmen vai até o meio do cômodo e ergue o braço direito na tentativa de puxar a corda que acende a luz. Como o braço está machucado, ela recua pela dor e puxa com o esquerdo. O lugar se ilumina e então é possível ver um sofá de dois lugares, uma estante de livros e um vaso de flores artificiais. Na parede está escrito: "Não se nasce mulher: torna-se mulher" em letras grandes. O homem se oferece de novo para cuidar do ferimento, para depois continuarem a relação. Ela entra na segunda porta à esquerda, a cozinha, onde existem apenas dois armários, além da pia, a geladeira e o fogão. Daí ela entra em outra porta, que leva à varanda. Procura um pouco e leva para a sala a rifamicina, o esparadrapo e a faixa. Carmen se senta ao lado do homem que pega gentil seu braço e faz rapidamente o curativo. Os olhares se cruzam e se aproximam os lábios. Seegue um beijo apaixonado quederruba os materiais no chão. Ela se separa do beijo, sorri e ganha um sorriso de volta. Eles vão para o quarto e se beijam mais e mais. O homem tira a camisa e senta na cama. Tiram os sapatos e se abraçam.
Neste momento Carmen se afasta: Ela não fez a cirurgia de mudança de sexo e tem medo de que ele a rejeite. Ele estende as mãos e diz para não se fechar: ele é uma boa pessoa. O corpos ficam nus e se amam envoltos em prazer. Variando entre rápido e devagar, carinhosamente e de forma selvagem, o sexo dura duas horas ou mais.
Carmen está com a cabeça no peito do loiro que ainda está ofegante. Ela se levanta e abre a janela, pega o cigarro na bolsa e o acende. Observa a lua, agradecendo-a silenciosamente por tantos presentes de uma só vez. Depois de três tragos, volta a cabeça ao homem sorridente. "Qual é mesmo o seu nome?", ela pergunta. O loiro responde, se chama Joseph. Ela o encara esperando ele perguntar seu nome, como não pergunta, fala: "Meu nome é Carmen". "Eu sei", diz ele.
Apesar de não ter falado antes o nome, ela não se preocupa: travestis costumam ser conhecidas. Ela fuma mais uns dois cigarros, para tentar segurar aquele êxtase contínuo. Ao olhar para cama percebe: ele está dormindo. Nua, Carmen caminha até a escrivaninha no canto do quarto e acende o abajour. Pega um papel, empunha a caneta, começa a escrever:
"Minha querida, quem diria?
Carmen pode ser feliz!Hoje na busca
Sou mais mulher
Ninguém me ofusca
Carmen pode, ela querMeu corpo é templo
De Afrodite e da Lua
Me deito com Deus
Eu sou toda suaQuem diria, minha querida?
Carmen pode ser feliz"
VOCÊ ESTÁ LENDO
Minimalismo Verborrágico - A Ordem da Desconstrução
RandomAqui estão presentes algumas crônicas que apresentam os primeiros participantes da Ordem da Desconstrução. Cada um tem sua forma de escrever, mas em comum a vontade de descontruir as Carrancas, máscaras que impedem a sociedade de se relacionar como...