Dark Paradise, por Carmen Celandine

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A taça está quase vazia. Uma mão pálida e ossuda a segura, mas logo a deixa no balcão. Os dedos pintados passam como se escolhesse qual objeto pegar. Um dicionário e um pequeno caderno, além de um maço de cigarros e um isqueiro estão alinhados cuidadosamente. A mão pega a garrafa de conhaque e enche a taça. Pega o maço, tira um cigarro e leva à boca vermelha. Com o isqueiro acende. O seu rosto está com maquiagem simples e o cabelo volumoso cobre o olho direito. Uma camiseta, um lenço, um mini short e um salto discreto mostram que este não é um de seus dias de drag. A cadeira está desconfortável e é muito próxima do balcão. Por este motivo, ela ajeita as pernas várias vezes. A bolsa está sobre o colo e o cigarro está no fim. Acende um e dá um grande gole no conhaque.

À esquerda está a parede e à direta uma mulher embriagada que conversa com o balconista. Ele arruma as várias garrafas nas prateleiras, deixando visíveis seus rótulos. Carmen dá uma volta de cento de oitenta graus na cadeira e olha para o palco no fundo do estabelecimento. Alguns casais dançam lambada.

Carmen está a observar os casais do palco enquanto fuma e bebe. Um homem se levanta de uma mesa próxima e a encara de forma repreensiva. Ele anda até o balcão e pede cerveja. Está vestido de forma casual, com uma camisa desfiada. Do olhar repreensivo surge um sorriso de escárnio. Carmen se vira para a parede, ignorando o homem. Daí surge a ofensa: "Seu monstro! Acha que é mulher?". Carmen está em um dia calmo, decide relevar as palavras do ofensor.

Após alguns segundos um copo é atirado. Acerta o balcão, mas se quebra e corta o braço da travesti. Do corte começa a correr sangue. Todo o lugar fica silencioso. As pessoas espantadas se viram para olhar a pessoa ferida. Carmen tira o vidro que se agarrou no braço. Pega a taça de conhaque e derruba o conteúdo sobre a ferida. Com o lenço que estava no pescoço faz um torniquete. Em seguida, abre seu caderno e confere longamente o dicionário. Escreve. Enquanto isso, o silêncio ainda impera e o ofensor e agressor respira ofegante voltando para sua cadeira. Todos estão focados na vítima, que nada faz senão escrever. Ela fecha o dicionário, está terminado.
Ouve-se o som do salto bater no chão. Antes de levantar acende outro cigarro. Na outra mão está o caderno. Carmen atravessou entre as mesas de cabeça erguida. Os olhos ainda a fitavam. Três degraus. Três batidas no microfone. Sobre o palco, ela ajeita o cabelo e respira fundo. Canta:

" Transitam nas ruas
Seres como eu
Transpiram no transe
Transcendem

Se você transborda
Também como eu
Transporte p'ra fora
Transforme

Agora transcrevo
Transpareço
Estou transtornada
Irada estou

Você precisa
Ó transeunte
De um transplante
Seu transviado

Você precisa
Ó transgressor
Da transferência
De transformação

Mude de bar, de rua, de lado, de mundo e de país
E se repetir a ofensa te mando p'ra lua e faço o que fiz:
Eu canto"

Todos aplaudem de pé: talvez convencidos pela canção e pelo carisma, talvez já dotados de abertura mental. Apenas uma pessoa não aplaude, o ofensor, que está sentado. Ao fim do longo aplauso todos se sentam e o homem se levanta. Toma ar para falar algo, mas é impedido pelas sonoras vaias que recebem. É empurrado para fora do estabelecimento enquanto Carmen, com o braço ensaguentado, gargalha vitoriosa.

O dono do lugar, percebendo como todos gostaram de sua apresentação, a chama para sentar na mesa de destaque. Pede que lhe faça um favor, venha trabalhar ali ao menos uma vez na semana. Onde poderá cantar, contar histórias ou qualquer outra coisa que quiser. Carmen aceita. Agora trabalha no Dark Paradise.

Minimalismo Verborrágico - A Ordem da DesconstruçãoOnde histórias criam vida. Descubra agora