Capítulo 2

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Obviamente, eu chego atrasada. Logo eu, a garota do bullet journal. Tenho tudo esquematizado nesse caderninho, só que as vezes ele parece inútil. Eu gostaria que pudesse prever o futuro para evitar esse tipo de situação.

Durante o meu trajeto de 40 minutos de metro até a agência em pé espremida na hora do rush, fiquei folheando minha caderneta. Estava lá:

Henrique Morgado, segunda-feira, reunião 8h00 (Chegar às 7h00!!!)

Recebi milhões de mensagens bipolares da Ju nas estações em que o celular tinha sinal. Ora, ela pedia desculpas, ora, me xingava, e, ora, falava do PREDO e suas genitálias. E foi ela, a primeira coisa que vi quando virei a esquina da rua correndo.

- Em que tom.... está o... Pepa? - pergunto a Ju enquanto tento recuperar o fôlego.

Pepa é o meu chefe direto, na realidade, o chefe de todo mundo da filial do Rio. Ele é um cara muito gente boa, na verdade. No entanto, ele é o tipo de pessoa que sai do sério muito fácil. Por isso, eu e Ju criamos uma tabela de cores que representa o estado emocional dele.  

- Bem, eu diria que ele ainda está em algum tom do vermelho. Não chegou ao roxo, certeza!

Apesar desses foras que a Ju dá na minha vida, nós funcionamos numa perfeita sincronia em momentos de desespero. Claro que esse não é o primeiro e julgo não ser o último. Ela entrega os papeis da reunião e caminhamos até a sala.

- Preciso que você seja um pouco mais precisa na tonalidade. Mais para o Rose Madder ou Persian Red? - pergunto com a mão na maçaneta da sala.

- Olha, Anne, sinceramente. Ele está meio vermelho-coral, mas nem acho que é com você. O Morgado pegou todo mundo de surpresa. Mas se você estivesse no grupo da empresa... - Ju levanta o ombro tentando se eximir da responsabilidade.

- Essa não é a questão agora. Então, foi super inusitado mesmo? Mas nada pega o Pepa de surpresa. Ai-meu-deus! - sinto um pequeno tremor. Tiro a mão da maçaneta e abraço os papeis com força - Ele deve estar o cão! Você está mentindo para mim. Hoje ele deve estar Bordô de tanta raiva!

Nisso, a porta da sala de reuniões abre, para o meu desespero e da Ju. Um homem alto de terno que não reconheço está parado encarando a gente como se esperasse alguma explicação. Atrás dele, vejo Pepa de relance, tão rápido que não consigo identificar o tom da sua raiva. Em volta da mesa, mais uns seis colegas de trabalho. Como assim, todos estavam ali? Acho que preciso entrar nesse grupo do whatsapp para ontem. 

Todos estão nos encarando na espera de uma resposta. Por um segundo, me pergunto se eles ouviram alguma coisa.

- Posso ajudar as senhoritas? - o homem não identificado pergunta. O ar-condicionado empurra para o meu nariz o cheiro de um perfume amadeirado que me deixa um pouco tonta. Além de lindo, alto, o ser é cheiroso.

- A B&T está esperando uma resposta - Ju vira para mim arregalando os olhos como um sinal para entrar na onda, ativando a nossa sincronia do desespero.

- Eu sei que o B&T precisa com urgência daquele prospecto, mas avise para o Sr. Taylor que tenho uma reunião no momento. E logo em seguida entro em contato. Obrigada, Juliana. - espero ter falado rápido o suficiente para ninguém se tocar que não existe nenhuma B&T, muito menos um Sr. Taylor.

- Sim, senhora, Dona Anne. - Dona Anne? Me segurei para não rir.

Antes de sair, Ju faz uma mini reverência deixando o momento ainda mais estranho. O homem ainda está parado segurando a porta.

- Você deve ser a assistente do Pepa, Roxanne.

- Anne - friso logo a minha preferência de como prefiro ser chamada - Peço desculpas pelo atraso, precisei resolver algumas questões com clientes. O senhor é... - estico a minha mão.

- Morgado - ele aperta a minha mão com muita seriedade. 

Claro que ele é o Henrique Morgado. Quem eu esperava que fosse, o papa? Acho que esse perfume mexeu com os meus neurônios 

- Fico feliz que a senhorita tenha achado um tempo na sua agenda para se juntar a nós - ele fecha porta depois que entro na sala.

Meu olhar de indignação fuzila as costas dele. Que cara escroto! Quem apareceu do nada na agência foi ele! Pior, já chega achando que tem o Rei na barriga. 

- Anne, sente-se, por favor! - Pepa me chama querendo evitar mais um momento de embaraço.

Olho para ele pela primeira vez desde que entrei na sala. Minha raiva em relação ao Morgado passa instantaneamente e o medo/vergonha assumem o seu lugar. Pepa não está nos seus melhores tons de vermelho (Amém!) e não parece que vai explodir. Então, me dirijo para o lugar vazio ao seu lado.

Morgado se posiciona perto de uma projeção de slides na parede que mostra um fluxograma que parece não chegar a lugar nenhum, com setas e números loucos. Olho para os colegas de trabalho e todos parecem querer cortar os pulsos de tanto tédio. 

- Espero que esse pequeno intervalo tenha dado tempo para vocês assimilarem o que eu explicava. A sede na Califórnia pretende - ele muda para o próximo slide que mostra um gráfico de barras e ouço um pequeno suspiro do Diego, gerente de arte - alcançar a meta de 30%...

Pika-pika.

Morgado para de falar no mesmo instante e o meu coração congela. Eu esqueci de colocar o celular no silencioso. Que droga! Todos na sala se entreolham, inclusive eu, para não levantar suspeitas.

- Bem - Morgado balança a cabeça como se o barulho tivesse sido parte da sua imaginação - a meta é alcançar 30% do mercado...

Pika-pika.

- É sério isso? - Morgado para apresentação de novo, dessa vez tentando esconder sua raiva num sorriso forçado - Alguém prende esse Pikachu numa Pokebóla, por favor! - todos riem nervosos. 

Essa deveria ser a minha oportunidade de colocar o celular no silencioso, mas ninguém mexe no celular.   Assim que eu entrar  nesse grupo idiota de whatsapp, vou sugerir que em momentos de constrangimento como esse, todos deve mexer no celular casualmente para ajudar o coleguinha a não ficar encrencado. 

De canto de olho, já percebo o  tom de vermelho do Pepa subir uma escala. 

- Será que posso continuar, ou tenho que ficar atento para não levar um choque do trovão? - Morgado olha para todos na sala e para o seu olhar em cima de mim. Desvio o olhar rindo com todos e começo a mexer nos papeis a minha frente para disfarçar.

Ele sabe que o Pikachu está escondido na minha bolsa. 

 

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