3° Noite

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Em algum momento da noite, uma rajada de vento frio atingiu-me, estranhei e procurei pelo cobertor, quando não encontrei, abri meus olhos, relutantemente, por alguma razão, o meu edredom estava jogado no chão perto da cama. Virei-me de barriga para cima, e passei as mãos nos meus braços para tentar esquentá-los um pouco.

Depois de respirar fundo diversas vezes, me levantei da cama, não conseguiria voltar a dormir, a uns dois meses, estava com problemas no sono, coincidentemente, também era o tempo que Alice, começou com seus problemas com sonambolismo, pelo que o médico disse, pode ter algo a ver com o fato dela ter visto nossos pais morrerem, no acidente de carro, até por que ela também estava lá.

Depois do acidente, pela vizinhança, todos diziam que ela ter saído viva do acidente, principalmente sem sequelas, era um milagre, mas o que eu podia dizer, ela tinha sequelas sim, hoje, eu podia ver isso, e sequelas piores do que ferimentos físicos, ela tinha sequelas no cérebro, não de retardamento ou de limitações, mas particularmente de pensamentos complicados e emoções conturbadas demais para uma garota de 12 anos. Mas eu ainda a amava, quando ela estava bem, ela ainda era mesma garota, ela não tinha mais pesadelos, ou surtos, só o sonambolismo, que era inofensivo.

Fui em direção ao banheiro do meu quarto e encarei a banheira, pensei em relaxar um pouco, mas logo me desfiz da idéia, me encarei no espelho em cima da pia, profundas olheiras e pele pálida, sinceramente, eu disse a mim mesma que só queria voltar a dormir, nesse caso, puxei o espelho do armário do banheiro, abrindo-o, procurei o tranquilizante em pílulas, e assim que achei, tirei duas pílulas.

Prontamente, fui em direção a porta do corredor, com o remédio em uma mão, com a intenção de pegar um copo d'água na cozinha, entretanto, Alice estava na porta de seu quarto, trocando o peso de seu corpo de um pé para o outro, silenciosamente.

- Alice. - disse uma vez, não tive resposta – Alice, disse de novo.

Ela estava em estado de sonambolismo, devagar me aproximei dela, minha pequena, ainda estava dormindo, nesse breve espaço de tempo ainda não havia acordado, continuava com o mesmo movimento. Fiquei de joelhos na frente dela, para tentar acordá-la, entretanto, assim que fiquei cara a cara com ela, seu braço se mexeu em minha direção, após, senti uma grande dor, e vi que ela abriu seus olhos.

Soltei as pílulas na hora, e com um rápido mas restrito salto, me afastei dela.

- Alice. - gritei

Com as mãos comecei a procurar o ponto de dor, quando minha mão encostou na lateral de minha barriga, senti algo quente e líquidamente pegajoso, estremeci. Olhei e vi o vermelho, vermelho líquido pingando ao chão. Meus olhos se arregalaram. Comecei a observar Alice, e só agora percebi que em sua mão, havia uma faca de carne, grande e agora, suja com meu sangue.

Enquanto pensava, a dor aumentava, estava em estado de choque, nada em mim se mexia, apenas meus olhos, que alternavam entre o delicado e juvenil rosto de minha pequena, e a arma afiada que ela carregava em sua mão.

"O que estava acontecendo?"

O desespero tomou conta de mim, quando aos meus ouvidos chegaram com impressionante nitidez, o agudo e longínquo grito de Alice. Ela levantou a face como se algo dentro dela tivesse despertado, seus olhos não transmitiam o calor e simpatia normal, mas estavam opacos, entretanto fixados em mim, como se estivesse assistindo com muito interesse minha agonia.

- Alice. - gritei, ela precisava acordar, eu precisava que ela acordasse

- A culpa é sua. - disse, e devagarmente deu um, apenas um passo. - Se você estivesse conosco, não teríamos saído com o carro de casa, se você estivesse conosco, mamãe não estaria com pressa, se você estivesse conosco, papai não teria gritado com a mamãe, se você estivesse conosco, eles não começariam a discutir no meio da estrada, se você estivesse conosco, papai não teria dado um tapa na mamãe, se você estivesse conosco, mamãe não teria perdido a direção, se você estivesse conosco, o acidente nunca teria acontecido, se você estivesse conosco, mamãe e papai ainda estariam aqui.

Ela começou a respirar fortemente, estava com raiva, só que sua voz tinha frieza, estava mais dura e direta do que nunca fora, minha pequena, delicada e juvenil irmã não estava ali.

- A culpa é sua. - ela gritou de novo, só que dessa vez, ela não se contentou apenas em falar.

Com a faca em punho, ela correu em minha direção, involuntariamente minhas mãos saíram do ferimento que ela causou, e ficaram em posição de defesa, em seu ataque mal formulado, consegui prender suas mãos, mas ela não parava, tentava de todo e qualquer jeito soltar suas mãos e me acertar, em um brusco movimento, do qual apertei fortemente seu pulso e puxei os dois braços para lados contrários, ela soltou a faca, a adrenalina que corria no meu sangue diminuia a dor do ferimento.

Quando se deu conta que a faca caiu, ela parou, por um milésimo de segundo, eu achei que todos os problemas daquela noite havia acabado, mas o pior ainda estava por vir.

Ela aproveitou meu momento reflexivo e chutou-me na barriga, a essa hora já estavamos no fim do corredor, beirando a escada. Soltei seus braços e abracei minha barriga, mesmo sem a faca, ela veio para cima de mim, veio com toda a sua força e comecou a me chutar ou socar, em algum momento ela puxou meus cabelos, e a dor foi muito forte, de forma inpensada eu reagi e soquei-a também, ela deveria ter parado naquela hora, ela cuspiu em mim, e gritou de novo:

- A culpa é sua. - e tentou me bater novamente

Não me aguentei, instintivamente a empurrei com toda a minha força. Ela foi, e tropeçou no inicio da escada. Ela tentou se segurar no corrimão, mas ela não conseguiu. Seu corpo caiu, e começou uma série de baques na escada.

Pouco a pouco, ela se machucava mais.

De baque em baque, ela chegava mais perto do chão.

De degrau em degrau, a vida saía do corpo dela.

O momento foi longo para mim, mas não deve ter durado nem um minuto verdadeiramente. Quando ela chegou ao chão do primeiro andar, seu cabelo se espalhou ao chão. E mais lágrimas preencheram meus olhos, rapidamente, eu desci as escadas e a dor da facada, do chute na barriga, ou das amargas palavras dela, sumiram.

Embalei seu corpo, corpo ensanguentado, corpo manchado de vermelho, corpo morto. Comecei a acalentá-la, e a chorar, eu que a havia empurrado, eu não queria, eu a amava tanto. Devo ter ficado ali durante vários minutos, para mim parceram horas, uma eternidade, eu tinha esperanças de que ela acordaria, de que chamaria meu nome. Entretanto eu só pude esperar que ela estivesse viva, e dizer:

- Eu estou aqui, tudo vai ficar bem.

Entre Nosso SangueWhere stories live. Discover now