Eduarda começou a suspeitar que o inglês a enganara quando ouviu o tango A Media Luz, interpretado pela orquestra La Pampa Lusitana. Na voz acanalhada e um tanto oleosa de Cipri de Vargas, o cantor da orquestra, a letra do tango não oferecia dúvidas:
Corrientes, tres cuatro ocho/Segundo piso, ascensor/No hay porteros, ni vecinos/A dentro, cocktail y amor
Corrientes, 348, o endereço da casa de encontros furtivos de que falava o tango, onde havia um piano e um gato de porcelana, coincidia absurdamente com a morada que John Alcott lhe dera antes de partir para a Argentina, a bordo do transatlântico Conte Biancamano. "Escreve-me para Avenida Corrientes, 348, Buenos Aires. Quando estiver instalado, aviso-te e vais ter comigo", prometera-lhe ele à despedida, um mês antes, no seu português trapalhão.
Corrientes, tres cuatro ocho. As malditas palavras não paravam de martelar-lhe na cabeça. Eduarda sentiu uma vertigem, como se o corpo quisesse desmoronar-se juntamente com os planos que nos últimos tempos a tinham feito sonhar. Corrientes, tres cuatro ocho. Para não se estatelar no chão, apoiou-se no ombro do seu par, um industrial de cutelaria do Minho que sempre que descia à capital não dispensava uma noitada no Biarritz - o último sobrevivente dos inúmeros dancings e cabarés que a loucura dos anos 20 semeara por Lisboa.
Pisito que puso Maple/Piano, estera y velador
-Sentes-te mal, Dadinha? – sobressaltou-se o cavalheiro.
Un telefón que contesta/Una fonola que llora
-Foi só uma tontura. Já passou – mentiu ela.
Viejos tangos de mi flor,/y un gato de porcelana/pa que no maulle el amor
Eduarda, que trabalhava como papillon no Biarritz, oferecendo companhia e o mais que fosse preciso aos clientes, viu-se refletida nos grandes espelhos em talha dourada que decoravam o grande salão do cabaré. Assustou-se. A cor fugira-lhe do rosto, estava branca como a cal. O calor dos lustres Luís XV, que pendiam como aranhas sobre os bailarinos, o reflexo dos metais da orquestra, o fumo do tabaco, o cheiro acre do suor, davam-lhe náuseas.
- Mando fazer-te um chá de cidreira, Dadinha?
Y todo a media luz,/que es un brujo el amor,/a media luz los besos,/a media luz los dos
Veio-lhe à memória o último dia passado com John. Ao cair da tarde, um passeio pela elegante Linha de Cascais, no veloz Studebaker cor de ginja do inglês. Um refresco numa esplanada do Estoril, depois uma visita ao luxuoso Casino, inaugurado dois meses antes. Na companhia protetora de John, Eduarda sentia-se vingada dos atropelos da vida e esquecia o seu passado pouco invejável, feito de privações e desamores. Nesses momentos não se sentia a papillon dum cabaré de má nota, mas sim uma daquelas mulheres coquetes que apareciam nas páginas das revistas sociais. Ao vê-los caminhar despreocupados pelo verdejante Parque do Estoril, o redator da Ilustração Portuguesa escreveria: "Madame Eduarda Fernandes, elegante como sempre, e seu marido, o engenheiro inglês John Alcott, em passeio pela Costa do Sol. Bonne promenade!"
De regresso a Lisboa, jantaram pastéis de bacalhau com arroz de tomate num restaurante do Parque Mayer (John pelava-se por pastéis de bacalhau) e fizeram um cruzeiro noturno pelo Tejo, entre o Terreiro do Paço e a Trafaria, num cacilheiro em que se podia dançar ao som duma jazz-band. O resto da noite, memorável como sempre, em casa dele, nas Avenidas Novas.
E agora ali estava ela, no abafado salão do Biarritz, nos braços daquele homem obeso e gentil, que lhe falava das propriedades curativas do chá de cidreira e das infidelidades da mulher. Maria da Assunção, assim se chamava a esposa adúltera, começara a infringir o sétimo mandamento com um capitão de cavalaria. Seguira-se um negociante de gado, um escrivão do tribunal e um caixeiro-viajante. Mais recentemente, a infiel arrastava o nome do marido pela lama com o abade duma freguesia vizinha.
Y todo a media luz/crepúsculo interior/que suave terciopelo/la media luz de amor
Logo no dia seguinte, Eduarda escreveu a John Alcott, um engenheiro inglês que durante um ano trabalhara em Lisboa para a Anglo-Portuguese Telephone Company. A carta veio devolvida, amarfanhada pela longa viagem e com um carimbo vermelho que parecia condenar à impossibilidade os seus dias felizes na Argentina: DESTINATARIO DESCONOCIDO. Eduarda insistiu, mandou uma segunda carta, mas o resultado foi o mesmo.
Como se um mal não bastasse, o Biarritz estava em risco de fechar as portas, ameaçado pela guerra que as autoridades moviam ao jogo clandestino, a que se juntava o pendor moralista e beato da ditadura instaurada pelo golpe militar de 28 de maio de 1926. Eduarda arriscava-se a perder a sua única fonte de rendimento quando mais precisava de juntar dinheiro para ir atrás do seu inglês...
Mas ela não era das que desistiam. Num rebate de coragem, jurou a si mesma que havia de trocar as voltas ao infortúnio. Que muito em breve embarcaria para a Argentina num dos navios da carreira da América – o Arlanza, o Massilia, o Giulio Cesare-, ao encontro de John Alcott, bebedor, mentiroso, mas que a tratara como nenhum homem o fizera antes.
E se não o conseguisse encontrar? E se John a rejeitasse? Bom, nesse caso ficaria na Argentina e começaria uma nova vida. Voltar a Portugal é que não, nunca!
Tinha falado com o Barroso, contrabaixista da orquestra La Pampa Lusitana, que vivera alguns anos na Argentina. Fitando-a com o seu único olho, Clemente Barroso contara-lhe maravilhas do país. "A Argentina? Sabes lá o que aquilo é, rapariga... Uma terra como não há outra, com imigrantes de todo o mundo, herdades a perder de vista, com milhares e milhares de cabeças de gado... E Buenos Aires? Jesus!.. Aquilo é que é uma cidade! Avenidas enormes, bares, restaurantes, cafés, tanguerias, que é como eles chamam às casas de tango."
Nas horas que o trabalho nos caminhos-de-ferro argentinos lhe deixava livres, Barroso ganhava uns pesos extras tocando contrabaixo numa dessas tanguerias. Quando em hora aziaga uma pedra projetada por uma locomotiva lhe vazou o olho esquerdo, o português fez as malas e voltou ao seu país. "Zanguei-me com aquilo tudo. E depois tive por lá uns desgostos sentimentais... Mas tu se puderes ir, vai, não olhes para trás."
Regressado a Lisboa, Barroso fizera-se músico profissional. Atuava em cabarés e festas populares, com o seu sorriso amargo, o olho de vidro inerte como um olho de um peixe e o contrabaixo que lhe amparava a imensa solidão.
As favoráveis descrições da Argentina entusiasmaram Eduarda. Num domingo à tarde, arriscou tudo. D. Laura, a proprietária da casa de hóspedes onde vivia, tinha ido à missa a S. Roque. Os outros hóspedes estavam fora. Eduarda entrou no quarto da anfitriã, que cheirava a perfume Heno de Pravia e a viuvez. Na segunda gaveta da cómoda, deu com um pequeno guarda-joias em ébano, trazido de Angola pelo falecido de D. Laura, o tenente Matias Piteira, que se batera como um tigre na campanha dos Dembos, às ordens do general João de Almeida. Eduarda destapou-o, vistoriou o conteúdo e decidiu-se por dois colares, uma gargantilha, um anel e duas pulseiras. Menos de um mês depois, estava sentada no banco dos réus do Tribunal da Boa-Hora.
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O Cometa Azul
Misterio / SuspensoA morte misteriosa do jovem futebolista José Manuel Soares, Pepe, em 1931, chocou o País. Com apenas 23 anos, avançado do Belenenses e da Seleção Nacional, Pepe era um dos melhores e mais populares jogadores portugueses. A imprensa chamava-lhe o Com...