Sábado, 9 de maio de 1931
Noite de primavera em Lisboa. A temperatura amena convidava a sair de casa. Casais de meia-idade passeavam pachorrentamente pela Avenida da Liberdade, revivendo os tempos em que ela tinha mais ilusões e ele menos barriga. Bandos de rapazes paravam frente aos cinemas, extasiados pelas atrizes dos cartazes ("Aquela é a Greta!"; "Não é nada, palerma... Não se vê logo que é a Marlene?"). Gente da província, de passagem pela capital, dirigia-se ao Parque Mayer, desejosa de soltar umas boas gargalhadas nos espectáculos de revista. Homens solitários tomavam uma bebida ao balcão dos quiosques da Avenida, de cara esbranquiçada pela luz crua dos candeeiros.
Perto dali, dois homens desciam a Rua da Alegria em direção à praça do mesmo nome. Evitando dar nas vistas, pararam junto a uma porta de madeira escura onde cintilava, em polidos caracteres de latão, o nome do Biarritz Club. O porteiro da casa, um ex-pugilista que nos seus tempos de glória deitara muito sobrolho abaixo nos ringues do Coliseu e do Parque Mayer, convidou-os a entrar. Veio o chefe de mesa, que depois de apresentar as boas vindas aos clientes fez sinal a um dos empregados.
- Santos, uma mesa discreta para estes cavalheiros.
Um sujeito baixo e careca, de casaco branco e laço preto, acorreu à chamada com ar desembaraçado:
- Sigam-me, por favor. É um prazer recebê-los no Biarritz. Podem estar à vontade, hoje não é dia de grande movimento.
A jazz-band de Oliveira Guedes, há pouco regressada duma digressão à Madeira, esforçava-se na interpretação dum charleston, mas ninguém parecia interessado em dançar. Clientes e papillons preferiam namorar à meia-luz, recostados nas confortáveis poltronas de veludo cor-de-vinho. Comerciantes, empregados públicos, gente das touradas e boémios de vária pinta exibiam a sua intimidade com as Suzetes, Cosetes, Arletes e outras portuguesas de gema, que afrancesavam os nomes porque la France era a pátria do chique e Mariete soava muito melhor que Maria da Conceição.
O empregado sentou os recém-chegados numa mesa afastada dos focos de luz. Depois veio uma garrafa de champanhe, do barato, pois nenhum dos homens nadava em dinheiro, seguida duma mulher de cabelo escuro, curto e cuidadosamente ondulado. Usava um vestido de tafetá azul, cingido ao corpo, e os lábios pintados de vermelho sangue. Mostrando-se espantada, dirigiu-se ao mais velho dos dois homens com familiaridade:
- Olha, olha... Quem é vivo sempre aparece! Há quanto tempo, Afonso! Mais de três meses, seguramente... A bola prende-te assim tanto? Ou é uma nova conquista?
- Nem uma coisa nem outra... Tenho andado por aí, mas as saudades fizeram-me voltar. E tu? Estás ainda mais bonita do que da última vez que te vi, Eduarda.
- Procuro cuidar de mim. Evito as companhias que me podem fazer rugas e cabelos brancos. E o teu companheiro? Parece-me que o conheço... Ah, já sei quem é. Como é que não vi logo?
- Cuidado, menina – cortou Afonso. – O meu companheiro está aqui incógnito. Veio de visita, percebes? Ele porta-se bem, mas hoje consegui convencê-lo a sair à noite. A vida não é só trabalho...
- Não te zangues. Já percebi. Digamos que é parecido com aquele que eu conheço dos jornais. Posso fazer alguma coisa por vocês?
- Para já, podes arranjar companhia para o meu amigo. Já catrapiscaste alguma, sócio? – perguntou Afonso.
O outro sorriu. Com um movimento de cabeça, indicou uma mulher loura que conversava com o pianista.
- Não tenho o prazer de conhecer aquela senhora, mas tenho a certeza que deve fazer boa companhia...
Eduarda assobiou em tom de admiração:
- Olá! A Natália? É a primeira vez que cá vens e atiras logo a caça grossa!
- Vá lá, Dadinha, não te faças rogada. O que tem a pequena de mal?
- Mal não tem, sou até muito amiga dela. Outras pessoas é que podem não gostar. A Natália tem uma posição muito especial aqui na casa.
- Ó diabo, querem ver que me enganei? Pensava que isto aqui era o Biarritz e afinal é um convento... E tu deves ser a madre superiora...
- Não me interpretes mal. Só disse que a Natália é um pouco diferente das outras. Mas está bem, como o teu amigo também é especial, vou chamá-la. Agora, atenção: se alguma coisa correr mal, não digam que não vos avisei.
As duas mulheres, muito semelhantes no corpo esguio e nos vestidos cingidos, cochicharam. A loura olhou de relance para a mesa dos dois homens, viu de quem se tratava e sorriu lisonjeada. O pianista Germano, um mulato de sorriso largo e carapinha cintilante, começou a tocar J'ai Deux Amours, o último êxito de Josephine Baker - a Vénus Negra.
O companheiro de Afonso não tinha muito jeito para calcular idades, mas pareceu-lhe que Natália andaria pelos 25 anos. Tinha pinta de estrangeira, com aqueles olhos azuis, a tez clara, o cabelo louro curto e artisticamente frisado. Fazia-lhe lembrar Elke, uma holandesa que conhecera anos antes, muito longe de Lisboa. Teria ela no amor as mesmas artes que Elke?
Só as mãos destoavam da aparência bem cuidada de Natália. A manicura não conseguia esconder as marcas dum trabalho anterior que devia ter sido árduo, a avaliar pelos dedos nodosos e por uma certa rudeza que nenhum creme disfarçava totalmente. "Tens mãos de camponesa, mulher", diziam-lhe algumas para a rebaixar. Mas bastava ela abrir num sorriso os lábios cor de romã, com os dentes muito brancos a luzir nas sombras do dancing, para ofuscar quem a tentava diminuir.
A empatia entre Natália e o recém-chegado foi instantânea. Falaram de coisas banais, de futebol, de bailaricos, de namoros, mas a troca de olhares denotava o que sentiam um pelo outro: uma paixão de elevada voltagem, feita de desejo em estado puro, que não podia demorar muito a ser saciada...
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O Cometa Azul
Mystery / ThrillerA morte misteriosa do jovem futebolista José Manuel Soares, Pepe, em 1931, chocou o País. Com apenas 23 anos, avançado do Belenenses e da Seleção Nacional, Pepe era um dos melhores e mais populares jogadores portugueses. A imprensa chamava-lhe o Com...