"When the music's over, turn out the lights" – Jim Morrison
Encontro-me no final da minha linha. Os anos passaram. Passaram tão rápido que certas memórias são para mim, o ontem.
Sempre fui instintivo, impulsivo, carregando a cada momento uma paixão controversa dentro de mim. Dramático, constantemente nervoso, mas transmitindo aos estranhos uma atitude calma... ainda assim o sou. No entanto, apanho agora o comboio, não o de ida, mas o de regresso. Olho pela janela... a escuridão diminui, as luzes tornam-se cada vez mais intensas. Para muitos, esta é apenas mais uma noite, uma noite normal. Para mim não. Esta é a noite em que decido voltar, voltar no último comboio. Tenho pousados nas pernas textos que escrevi. São estes que irei ler durante esta viagem.
Vivo agora no tempo em que os filmes não têm finais felizes, mas a vida parece passar a tê-los. As correntes desprendem-se, caiem e enferrujam-se. Aos poucos vou lendo os textos que suporto.
"Sabem quando estão com o nariz entupido e praticamente perdem o vosso olfato? Quando mal conseguem respirar? É assim que me sinto neste momento, só que em vez de me assoar, prefiro continuar a fungar constantemente. Eu faço parte deste tipo, do que prefere continuar a fungar e a fungar, sentindo assim, por breves instantes uma sensação de alívio. Como estou constipado, sei que se me assoar agora, vou ter que voltar a fazê-lo daqui a 5 minutos, e isso dá muito trabalho, já para não falar da quantidade de lenços que vou gastar. Portanto em último recurso, quando já nem consigo praticamente respirar, recorro a um usado que tenho no bolso. É exatamente assim que sou com a minha vida.
Estou no comboio. Apanho este comboio exatamente à mesma hora todos os dias. Olho em redor para os restantes passageiros. Algumas caras são-me familiares. Pessoas que vivem na rotina, como eu, que apanham este mesmo comboio todos os dias a esta hora. As restantes não associo. Costumo ter um passatempo nestas viagens. Olho para cada uma destas caras e tento perceber o seu carácter, o seu passado, presente e futuro. Agora olho para o máximo que consigo e apercebo-me de uma coisa. Só existem 2 tipos de pessoas... aquelas que vão fungando e as que se assoam logo."
"Hoje não viajei no comboio das 16h23, o comboio que geralmente costumo apanhar. Desta vez fugi da rotina e decidi ir num mais cedo (talvez esta decisão tenha tido a ver com o facto de o meu pai ter bebido uma garrafa de vinho, sozinho, e se tenha tornado demasiado chato). Cheguei à estação e encontrei um amigo. Um rapaz ligeiramente mais novo que eu, mas com quem geralmente costumava desabafar, conversar. Fiz a viagem a conversar com ele e mais dois outros rapazes. Decidi depois continuar com esse meu amigo, para continuar a falar, como nos velhos tempos. Algo parecia diferente nele, mas não sabia exatamente o que era. Com o decorrer do tempo, comecei a sentir que quanto mais nos aproximávamos do seu destino, mais ele queria ficar sozinho. A minha curiosidade despertou. De repente dei por mim a fazer-me de despercebido quanto aquelas indiretas que ele me ia dando... queria saber porque é que ele estava a agir assim, ele nunca agiu desta maneira. Quando chegamos ao local, logo me apercebi. Ele tinha acabado recentemente uma relação com uma rapariga. No entanto... ainda está agarrado a ela, ainda não a esqueceu. Esta mesma rapariga frequenta o local para onde ele se dirigiu... a sua intenção era encontrá-la, mesmo sem saber o que aconteceria depois. Nesse mesmo instante, revi-me nele."
Enquanto estava a ler estes textos, estava a lembrar-me dos acontecimentos que me levaram a escrevê-los. Estava a sentir de novo o que sentia na altura. Na sua essência, ainda continuo a senti-lo. Sentia-me um viciado, doente. Por mais que soubesse que estava a sofrer, não conseguia parar. Não conseguia desistir do alívio que sentia quando "fungava". Não conseguia desistir do que sentia quando o fazia... amor. Se me "assoasse", corria o risco de nunca mais o sentir.
A verdade é que não me consigo afastar definitivamente da rapariga a que estava e continuo preso. Ela encontrava-se e encontra-se a cada segundo na minha mente, entorpecendo-me os sentidos. Por mais que tentasse não pensar nela, não conseguia. Podia até sentir que o estava a conseguir, mas era apenas por breves momentos. Pego nestas duas folhas e pouso-as no banco à minha direita. Começo a ler o texto que ficou agora descoberto. É uma continuação destes que acabei de pousar.
"São 16h25. Estou no comboio. Continuo constipado, a fungar. Os rios têm andado a transbordar, a chuva a cair constantemente. O nível do mar sobe, os polos derretem-se.
Cada pessoa tem o seu ponto fraco, o seu calcanhar de Aquiles. O meu sem dúvida são as raparigas. Em tantos problemas me meti por elas e em tantos outros me meterei. É nesta água que me vou afogando. Ainda há pouco tempo quase já nem conseguia respirar, viver sequer, porque até de saber nadar já me tinha esquecido. Não sei se já alguma vez se estiveram a afogar (refiro-me ao sentido literal, sem metáforas) ... mas a uma certa altura, a única coisa que sentem, é desespero. Puro.
Quando acabei o meu 1º ciclo, a festa de finalistas foi na casa da avó de um colega. A casa tinha piscina. A uma certa altura, alguém decidiu organizar um salto coletivo para a piscina. Assim, depois do salto, quase me afoguei, não sabia nadar e estava na parte mais funda. Vamos ao pormenores agora... na altura eu gostava de uma rapariga, tinha uma paixoneta por ela. Essa mesma rapariga foi a que organizou o salto. Ela sabia nadar, eu não. Eu estava perto dela quando esta anunciou o evento, só que... ela começou a afastar-se de mim, a dirigir-se cada vez mais para o fundo. Eu sabia que não podia segui-la, sabia que não podia saltar dali, mas no preciso momento em que a razão me estava a dominar, a rapariga deu-me a mão, levou-me para a sua beira. O que me lembro depois disso, é estar debaixo de água, a afundar-me aos poucos. O ar começava-me a faltar... estava em pânico, a mexer-me o máximo possível (como se estivesse a ter um ataque de epilepsia). Desejava apenas que alguém notasse o meu desespero... De súbito alguém mergulhou e arrastou-me para a berma. Quando já estava a salvo, com uma toalha em volta de mim, a rapariga não estava lá. Foi a única vez em que quase me afoguei literalmente. Na teoria, foi assim que aconteceu nas outras todas.
Saí agora docomboio, estou a dirigir-me para a saída da estação... a minha ex-namorada. Aminha ex-namorada, a única rapariga que alguma vez nunca me fez mal, está àminha frente. Acabei com ela há praticamente um mês... penso no motivo, agora queestou cá fora, depois de ela ter entrado no comboio de onde acabei de sair. Omotivo mantém-se. Nunca fui capaz de me afogar por ela.
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Comboio das 16h23
Short StoryNão sei em que comboio estou, para onde vou e ao certo como vim aqui parar. Estou sentado. Tenho comigo textos, textos que escrevi durante as viagens no comboio das 16h23. Leio-os e perco-me nestes.