The Doors - When the music's over

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A minha atenção foca-se de novo nos textos, e assim, retomo a minha leitura.

"A meu ver, a beleza encontra-se onde nunca ninguém a viu antes, pura e escondida, comprimindo o coração de quem a vê, a cada segundo em que olha para ela. Eu quero viver num mundo onde sinta isto a cada momento, permanentemente...

No meu íntimo, sempre interpretei a minha vida como um filme. Os acontecimentos que a ela constituem, muitas vezes parecem mesmo saídos dum argumento cinematográfico. Uma vez fizeram-me esta pergunta "Se a tua vida fosse um filme, qual seria o género?"... complementando esta, também numa certa ocasião responderam-na com outra "Como é viver numa comédia?". Na realidade, eu consigo complementar ainda mais... eu vivo numa comédia dramática, situada nos subúrbios de um subúrbio, que dizem estar parado no tempo. Num romance musical que culmina em histeria ou melancolia. Numa fantasia futurista de mãos dadas com o classicismo. Numa caça incessante ao tesouro que é..."

Paro de ler. Na minha mente surge apenas um palavra que completa a última frase do texto... vazio. Vivo numa caça incessante ao tesouro que é o vazio. Finalmente consigo ter noção disto.

Olho pela janela do comboio e reparo em algo... já consigo ver os carris por onde rumo. De certa forma, já está determinado. Os carris que me suportam e transportam, não dão lá grande escolha quanto ao meu destino... só em certas alturas, é que é possível escolher... escolher em que direção da linha é que o comboio vai... se continua em frente, se vira na linha à esquerda, se vira à direita, se simplesmente pára, etc...

Continuando a pensar no rumo que este comboio toma, bloqueio de repente neste pensamento... e se o comboio simplesmente pára? Se este parar bruscamente... provavelmente serei projetado, provavelmente acabarei no chão. No entanto... será que isso é mau? Será que isso irá acontecer brevemente? Será que vai acontecer agora? Estou aqui a ler os meus textos, a voltar neste último comboio... mas o que é que me garante que este não vai parar agora? Que não vou acabar de cara esborrachada no chão? Enquanto estou concentrado no passado, enquanto estou perdido nas reflexões... o que é que me garante que alguém não se vai por exemplo meter no meio da linha? E de novo... será que é mau este parar, parar neste caso para salvar quem se me meter na linha?? Fico no chão, mas acabo por salvar alguém desta forma. Toda esta reflexão, todos estes pensamentos, o facto de estar no último comboio... isto deixa-me mais desprotegido do que nunca.

Muitas folhas continuam ao meu lado... textos que escrevi. Muitos mais tenho para ler enquanto faço a viagem, mas no entanto, este monte parece-me tão frágil!! Se alguém se meter mesmo no meio da linha ou se simplesmente o comboio seguir pela linha errada, aquela que não me vai levar ao destino definido, folhas vão voar pelo ar, espalhar-se pela carruagem enquanto eu caio em cima delas. Quando entrei neste comboio, mais ninguém entrou. Quando este arrancou, cautelosamente percorri as várias carruagens no intuito de confirmar se estava mesmo sozinho ou não. Nas poucas paragens que este teve, nos apeadeiros e estações, ninguém entrou. Concentrado nos textos, concentrado e perdido nas reflexões após os ler, apenas sentia o comboio abrandar. Quando este parava por breves momentos, ninguém entrava, pois mesmo não olhando sequer para fora do comboio, ficava na expectativa de ouvir alguma porta abrir, mas... isso nunca aconteceu. Já faz também muito tempo desde que o comboio não abranda, desde a última vez que parou em alguma estação ou apeadeiro. É este o perigo, o que me faz pensar que vai parar agora. Já vou tão rápido, sem abrandar, sem parar sequer em alguma estação, que a probabilidade de estar no caminho errado ou de simplesmente alguém se meter no meio da linha, é demasiado grande. Está-me a dar uma comichão nas costas... passo lá a mão e sinto um ponto negro. O comboio para bruscamente. No meio de uma explosão de folhas, flutuo. Em cima de uma cama de folhas, estou agora deitado. No chão está agora a minha cara esborrachada. Esborrachada em cima de uma folha, para ser mais concreto. Quando descolo a minha face do chão, a folha vem agarrada. Pego nela, viro-me, e deitado no chão, de barriga para o ar, em cima de um monte de folhas, leio-a.

"Atualmente, no rumo que sigo, a vontade de querer algo é demasiado...

Corro constantemente o risco de quando conseguir o que quero, não ficar satisfeito com isso, porque já o tenho, e assim, querer algo ainda mais... o vazio que sempre senti, ainda não desapareceu. Por vezes "o vai e não vai" é preferível ao que vem a seguir a isso... no entanto, não é este o meu rumo. A vontade de querer algo é demasiado incompleta. Não quero viver pensando no "e se". Á medida que vou seguindo o meu caminho, vou despertando do sono anestesiado em que vivo, sono esse causado pela droga que é a contenção. Não vou deixar o que quero, o que me faz sentir completo, no vai e não vai."

Há bocado levantei-me do chão. Ainda fiquei algum tempo simplesmente deitado, a recuperar da queda, da travagem brusca do comboio. Enquanto estava deitado nos meus próprios textos, senti que me afundava em areia movediça. No entanto, permaneci assim, desfrutando essa sensação. O meu olhar focou-se mais do que nunca no vazio. Não sei bem se estava a pensar em alguma coisa ou se o meu cérebro sobrecarregou com infinitos fragmentos de memórias. Cada vez me sentia mais a afundar naquele monte de folhas, sentimentos, passado, memórias. Levantei-me de súbito, apanhei e reagrupei todas as folhas que estavam agora espalhadas. Sentei-me, simplesmente com os textos de novo no meu colo.

Estou de olhos fechados, com a cabeça encostada no meu banco. Se estivesse de olhos abertos, estaria a ver o teto do comboio, o ecrã onde aparecem as paragens e destinos. Em vez disso, estou a olhar para os olhos dela, estou a sentir o que provoca em mim, estou a tocar ligeiramente no seu cabelo.

Abro os olhos e pego nos textos que escrevi. Levanto-me agora, abro a janelinha que está à minha beira, e simplesmente, deixo-os lá cair. Estes desaparecem instantaneamente. Volto a sentar-me. Sentado, agora, pouco mais sou do que uma estátua. O meu olhar centra-se no vazio, o meu corpo, que geralmente vibra quase impercetivelmente, frenético, encontra-se petrificado. Cada vez me perco mais no vazio. Uma parte de mim desvaneceu-se no vento.

Petrificado, descubro-me agora, a mim próprio. Agarrado a memórias, a pensamentos retidos no passado, nada era mais, senão, um morto vivo. Livre, agora, sou. Nas estações por onde vou passando, reparo agora nas pessoas que lá estão, que esperam, cada uma, o seu comboio. Aos poucos, a velocidade deste comboio diminui, tal como o perigo que este constitui.

Aos poucos, o vazio em que me perco é cada vez mais ofuscado por um som distante, que lentamente se vai aproximando, que ao início era quase impercetível, mas que agora se torna a minha realidade. Em Paris, um estranho ergue-se da sua sepultura. Tudo começa num sussurro. Vagueando sem qualquer destino, sem pensar em absolutamente nada, o estranho transforma o que inicialmente era um sussurro, na melodia que agora é a minha realidade.

A velocidade do comboio vai diminuindo, sinto-o a abrandar, cada vez mais. Vejo uma estação antiga, perdida no tempo, praticamente em ruínas. Lá, um vulto aguarda-me. À medida que o comboio vai abrandando, à medida que se vai aproximando da estação, a melodia que se tornou a minha realidade, intensifica-se cada vez mais, o volume torna-se cada vez mais alto.

O comboio pára. A melodia domina-me. O vulto que me espera, é o estranho que se ergueu da sepultura. Quando me aproximo dele, a melodia transforma-se de novo no sussurro... "When the music's over, turn out the lights"

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Comboio das 16h23Onde histórias criam vida. Descubra agora