Tjutjuna - Harry Krishna

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 Decido regressar novamente ao passado e continuo a ler.

"Hoje é Sábado, ou seja, não tenho que apanhar o comboio. Estou de pijama, não me apetece fazer nada, estou simplesmente deitado na cama a ver filmes. Sinto a minha cabeça pesada, dói-me. No entanto está frio lá fora, não me apetece sair daqui. Sinto-me um pouco frustrado por estar assim, por não estar a fazer algo "produtivo". Sonho em estar a viajar pelo mundo, conhecer sítios novos, pessoas diferentes... no entanto cá estou eu, anestesiado no conformismo, num sedentarismo doentio, agarrado às minhas circunstâncias atuais. Está frio, chove, não tenho carta de condução... sinto-me preso... amarrado, amordaçado. Uma maré de fragmentos de memórias, pensamentos, inunda-me o esprito. Revolto-me quanto à minha vida. Estou farto da rotina. O sonho e a razão entram em conflito. Um diz-me para pegar numa mochila, enchê-la com roupa e artigos básicos de higiene, fazer-me à estrada com apenas um destino... afastar-me o máximo possível da minha origem, das minhas memórias. Recomeçar do zero. Agora mesmo. Quero sentir-me verdadeiramente livre, sem me preocupar com mais nada... nem com o dinheiro, nem com a minha família, nem com o meu "futuro" (a minha vida académica, profissional). Tudo isto acaba por me aprisionar. Como não tenho carta, vou simplesmente andando a pé, à boleia, simplesmente vou indo...

Apercebo-me agora que a razão está sempre presente, domina o sonho. É responsável pelos "se" e "mas" que me mantêm aprisionado, mas no entanto seguro. A meu ver, todos os seres nascem livres, no entanto, mal nascem... o mundo incute-lhes a razão. Incute-lhes isto porque viver é algo perigoso, a vida anda sempre lado a lado com a morte, tal como o sonho com a razão.

A história de Christopher McCandless ficou eternamente célebre com o filme "into the Wild". Em 1990 este jovem ser humano tomou uma decisão.... tornar o sonho a sua propia razão. Este sentia-se aprisionado... amarrado, amordaçado. Deixou tudo o que tinha, afastou-se da sua origem, de tudo o que o aprisionava. Adotou um novo nome (Alex Supertramp), queimou todos os pertences que o ligavam à sua velha vida, e seguiu assim o seu sonho... sentir-se vivo, livre. O fato de ter tomado esta atitude, fazer do sonho a sua razão, fez com que tenha ficado vulnerável. Morreu dois anos depois, com 24 anos. No entanto, mesmo morrendo extremamente novo, morreu a viver o seu sonho... o que será que é verdadeiramente mais importante? Viver bastante tempo mas no fundo, infeliz, aprisionado... ou viver sem dar importância ao tempo, sendo completamente feliz?

São agora 21h17. O meu pai não está em casa, foi sair. Tenho a minha mochila cheia de roupa, a porta está aberta, aguardando a minha saída... não sei exatamente para onde vou, nem como... Sigo para Noroeste. Perco-me na música, deixo-me ir.

Encontro-me no meio de um bosque. Está a chover torrencialmente mas a chuva não me molha... olho para o chão e vejo um círculo. Este é formado pelo contraste entre a terra seca e molhada. Dou dois passos em frente... o círculo desaparece e forma-se agora no sitio onde me encontro. Olho agora para cima. O céu está limpo, o sol brilha intensamente... não há nuvens. De onde vem a chuva então? Porque é que esta não me molha? Sinto uma brisa. Esta é suave, transporta um frio de início de Outono... a chuva desvanece-se na brisa. Olho outra vez para o chão... já não vejo terra seca e molhada... nem sequer vejo terra. Apenas folhas. Folhas em tons de laranja e castanho. Olho de novo para cima, já não vejo o sol. Este esconde-se agora entre as árvores, jogando às escondidas comigo. Sinto de novo a brisa. A intensidade vai aumentando... as folhas começam a ser arrastadas... de súbito esta transforma-se em vento. As folhas voam. Não consigo ver nada, sou obrigado a proteger a minha cara com os braços e a fechar os olhos...

Abro os olhos. Estou agora acordado. Ontem não cheguei sequer a fazer a minha mochila para sair de casa... a razão continua a aprisionar-me. Hoje também não vou apanhar o comboio... continua a ser fim-de-semana."

"Já alguma vez sentiram que há certas alturas nas vossas vidas em que tudo acontece de uma maneira concisa e de certa forma determinada para que algo improvável aconteça? Por exemplo, por mais que decidam afastar-se de alguém, algo (a esta força são habitualmente dados vários nomes... destino, Deus, etc...) faça com que se aproximem outra vez?

Estou no comboio. São 18h20. Devia de ter vindo no das 16h23, mas perdi esse comboio. Desde o início da viagem, estou a escrever sobre o que as pessoas consideram mais importante para si no mundo. Olho para os restantes passageiros e noto que a resposta seria diferente em todos eles. O senhor que está à minha frente provavelmente diria que é a sua carreira, tudo o que alcançou até agora. Olho para a rapariga que está nos bancos à minha direita... a reposta seria, ela própria. A minha atenção é agora atraída para um casal claramente apaixonado que se encontra no início da carruagem. A rapariga está com a cabeça encostada no ombro dele. Este vai fazendo-lhe caricias, mexendo-lhe no cabelo. Aos poucos ela vai aproximando a sua boca da dele. Começam a beijar-se... peço desculpa pelo relato lamechas, mas com isto quero apenas dizer que se lhes for perguntar o que para eles, neste momento, é a coisa mais importante do mundo... a resposta é um pouco óbvia. Parecem-me encontrar-se naquela fase em que no final das chamadas começam com o "desliga tu primeiro", "não desliga tu", "ok, desligamos então aos 3, vá... 1,2,3", " já desligaste?".

Se me perguntarem o que no mundo considero mais importante, a reposta é Beleza. É o que de mais subjetivo e raro existe. Quando falo de Beleza, não me refiro a beleza. Não me refiro a algo comum. Não me refiro a algo simplesmente bonito. Refiro-me a algo que poucas vezes presenciei na vida, e quando o presenciei, quando o senti... senti-me completo, senti que o mundo fazia sentido naquele momento. Uma vez disseram-me que tenho um vazio inconsolável dentro de mim, algo que constantemente procuro preencher. No fundo é isto que procuro... Beleza. É como se me alimentasse disso, dessa sensação. Sinto-me uma espécie de vampiro faminto que vai ficando cada vez mais magro e pálido. A dura verdade é esta... a Beleza está a desaparecer, a extinguir-se, a tornar-se cada e cada vez mais rara. Há algo essencial que tem que existir para que esta exista também. Pureza. Esta ligação entre ambas resume-se a uma relação simbiótica. Ora, a Pureza corrompeu-se, tornou-se sintética, falsa.

A chuva torna-se cada vez mais intensa lá fora. Os rios transbordam, a chuva move as terras. Tornados danificam habitações, a neve encerra as serras. A natureza quer regenerar-se, reestabelecer a Beleza. Este comboio torna-se uma arca de Noé. Desliza sob as águas, sobrevoa as catástrofes. Tudo é destruído, renovado lá fora. Nós, os passageiros, somos os escolhidos. Como é óbvio... estou a mentir. Não há escolhidos. Todos nós seremos lavados pela chuva.

Chego agora ao meu destino. Estou a pegar no meu casaco, na minha mochila e ouço uma voz a chamar-me. Olho para trás e vejo uma face familiar, um amigo meu. Viemos este tempo todo de costas um para o outro sem nos vermos. Saímos do comboio, vamos para o metro e a conversa foca-se num assunto. Este tem a ver com uma rapariga. Encontro-me preso neste assunto. Esta coincidência, esta conversa, leva mais tarde ao que me referi no primeiro parágrafo deste texto.

Já alguma vez sentiram que há certas alturas nasvossas vidas em que tudo acontece de uma maneira concisa e de certa formadeterminada para que algo improvável aconteça? Por exemplo, por mais quedecidam afastar-se de alguém, algo (a esta força são habitualmente dados váriosnomes... destino, Deus, etc...) faça com que se aproximem outra vez?"    

Comboio das 16h23Onde histórias criam vida. Descubra agora