Um Cãoto

Capítulo 1

Semana 1

Caminhar é difícil. Eu sinto muito frio e muita fome, acho que quase o tempo todo. Meus irmãos são muito fortinhos e eu sempre tenho que arrumar um jeito de empurrá-los para o lado, ou não consigo mamar. Ainda não enxergo e nem ouço nada, parece que é normal, ninguém fez nada a respeito.

É, deve ser normal.

Às vezes eu choro muito porque não encontro minha mãe. Não sei onde ela vai, mas meu Deus, fica mais frio quando ela vai embora.

Semana 2

Eu já escuto e já abri os olhinhos, mas ainda não enxergo muito bem, tá tudo meio embaçado.

Estou mais fortinho e não me preocupo com os meus irmãos mamando tanto. Estamos mais "civilizados". Pelo menos foi o que a nossa tia humana disse, então deve ser.

Quero correr e brincar só que em vez de me ajudarem, eles - a tia e seus filhotes - riem da minha cara e eu me divirto muito porque os filhotes da tia também caem; mais do que eu! Ah, é mesmo! A tia tem dois filhotes, são esquisitos, pelados e gritam bem mais que nós. Têm cheirinho gostoso de filhote por isso sei que são como eu.

Ontem fui tentar correr atrás da tal "bolinha". Sei lá o que isso quer dizer, mas a tia ficou felizona quando eu tentei. Só que eu cai do degrau da cozinha... Mesmo assim, a tia disse que estou ficando mais forte a cada dia e mais bonito também! Então devo estar no caminho certo.

Semana 3

Tomei esporro. Sei lá porquê! Mamãe me olhou feio também, mas poxa, eu estava apertado! Desde quando é errado se aliviar?! Ainda não consigo controlar bem essas coisas também, até parece que mamãe e a tia nunca foram filhotes. Ou comeram pouco hoje e estão mal humoradas, vai saber? A tia me colocou de castigo, não era pra tanto também. Vou tentar não fazer mais xixi onde mamãe não faz. É, deve resolver. Pelo menos eu peguei a maldita daquela bolinha hoje. Certeza que ela zomba com a minha cara rolando por aí!

Semana 4

Minha tia chorou hoje. Não entendi o que houve. Mamãe disse que é coisa de humanos e devemos só apoiar e ficar por perto, caso precisem, então eu e meus irmãozinhos demos várias lambidas nela. Não resolveu muito... Daí fui brincar com os filhotes dela.

Os filhotes da tia não parecem crescer na mesma velocidade que a gente. A gente já corre pra todo o lado, cheira tudo e eles ficam lá: sentados. Com umas coisas coloridas de encaixar, olhando aquele treco que emite umas cores - não sei bem o nome das coisas todas, mas estou aprendendo.

Semana 5

Nossa tia nos colocou num tipo de caixa, quer dizer, eu conheci uma coisa do tipo que chamaram de caixa, mas aquilo era diferente. Parece que tudo tem uma lógica parecida, então é tudo meio igual, mas funciona diferente, sei lá. Ela não quer dizer pra onde vamos, não levou nossa mamãe. Meus irmãos estão ansiosos, mas eu estou confuso. AI MEU DEUS! Essa joça faz barulho! ESTAMOS SAINDO DO LUGAR MAS EU NÃO TO SENTINDO!

Consegui ir pro colo de um dos filhotes da tia, agora quero tentar ver o que está acontecendo do lado de fora. Tem um monte de coisa lá, mas eu não consigo ver direito, sou muito pequeno ainda. Preciso crescer mais!

A tia foi tirando um por um daquela coisa, os filhotes dela ficaram com a gente, mas não estávamos na rua. Era tipo uma caixa praquela caixa! Eu ouvi algo como "estamento".  Muita coisa acontecendo ao mesmo tempo, deu saudade daquela cadeira que a tia diz que eu "roí". Eu só queria estar em casa com a mamãe e a bolinha. A bolinha não leva a gente pra lugares esquisitos.

Minha vez de sair! Não entendi bem o que significava aquilo, mas já fiquei feliz. Talvez eu não voltasse pra lá como os azarados dos meus irmãos. Ou talvez voltasse, mas pelo menos tinha saído daquele troço um pouco. Que alívio!

Não, pera.

Me colocaram numa mesa gelada, credo, é muito frio aqui. E olha que agora eu tô ficando peludo igual a mamãe!

SOCORRO! ESSA ESTRANHA TÁ COLOCANDO ALGUMA COISA NA MINHA BUNDA! TIA, ME AJUDA! Humpf! Bom mesmo, dona moça. Isso é muito feio! Sua mãe não te deu educação? É pra CHEIRAAAAR! Nada de intimidades com objetos e... que isso? Mas que...!

Só coisas geladas! Quentinho que é aconchegante e AI! ELA ME ESPETOU, TIA!

Estamos voltando pra caixa. Odiei sair de casa. Não quero nunca mais. Está decidido! Odeio rua e nunca mais vou sair na minha vida!

Semana 6

Aconteceram muitas coisas nesses últimos dias. Vou tentar resumir: mamãe foi pro hospital. Parece que tem algo a ver com o leite dela. Acho que tomamos demais! Ou de menos? Não entendo muito de humanês ainda. Mamãe que traduzia as coisas pra gente. Na verdade, eu estou com uns tios diferentes. Eles têm um bicho estranho, mas nada de filhotes, vai ver são muito novos pra isso que nem eu! O que aconteceu é que eu e meus irmãos fomos pra rua de novo e cá estou eu, provavelmente porque mamãe foi pro doutor, mas não entendi porque meus irmãos não estão comigo. Não sei quanto tempo vou ficar.

O estranho é que eles não me chamam de "bebê" igual a tia e os filhotes dela. Eles me chamam de "Fred". E o bicho estranho é "Luz". É, também achei estranho. Mas o bicho todo é estranho, então ok. Às vezes eu corro até ele pensando que tá morrendo, mas tá só vomitando, maior fiasco - dá pra ouvir do outro lado da casa. Tentei comer também, mas parecia mais um monte de... pelo.

Semana 7

Eu queria poder dizer que estou me acostumando com os tios novos, gosto muito deles, mas ainda me sinto sozinho: queria minha mãe, meus irmãos, os filhotes da tia pra brincarem comigo, sinto saudade deles caindo o tempo todo comigo; agora eu caio sozinho e aquele tal de Luz ainda ri de mim. Não sei quanto tempo vou ficar aqui, só queria ir logo pra casa.

Essa comida que eles me dão é estranha, seca, ruim, machuca a gengiva pra mastigar. Eu não tô pronto pra largar o leite da mamãe! Me levaram naquele lugar frio e insensível de novo, onde me deram a espetada. Tá, não o mesmo lugar, era parecido. Disseram que eu era muito novo pra ficar longe da mamãe, que talvez a tia que me "doou" (sério, como assim? O QUE ISSO SIGNIFICA? O QUE ELA FEZ COMIGO?) não soubesse. Eles explicaram pra esse moço "a minha história". Eu fiquei quietinho, prestando atenção.

Parece que mamãe foi encontrada grávida, com uma coleira onde dizia "cuide de mim" e que essa mulher (a tia) ficou com pena do estado de fome e sujeira da mamãe. A saúde dela estava ok, mas ela decidiu cuidar da mamãe e doar os filhotes ("doar os filhotes", o que diabos é DOAR? DÓI POR ACASO? A GENTE MACHUCA? ACHO QUE NÃO!). Éramos 6. Seis? Hm. Humanês é confuso...

Mas de qualquer forma, esse moço do lugar frio disse que ela só poderia separar a gente depois dos 90 dias por causa de um treco com nome difícil que eu não sei pronunciar, mas tem algo a ver com social e coisa e tal. Tentei explicar que eu era um bom menino e que eu só queria a minha caminha; claro que ninguém me ouvia. Tios e tias não entendem cães muito bem, mamãe havia me alertado sobre isso.

Ainda não consigo comer aquela bolacha horrível. E me dá muita sede quando tento! Voltamos e ganhei um tal de "patê para filhotes". Beeeeem melhor!