No vermelho

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Todos nós conhecemos esta fase: "no vermelho". Experimentamos esse transe ou até mesmo tememos essa situação. Estar nesta condição é mais complexo que uma crise econômica ou social. Talvez a definição mais sóbria seja de clímax da junção dessas crises. É exatamente isso: o ato de estar no vermelho é ficar no centro do alvo e torcer para que o atirador tenha conflitos com a maldita mira.

Estar no vermelho não é considerado doença, mas pode trazer complicações para o portador desse mal. A falta de dinheiro, por exemplo, pode causar perda de apetite. Você entra no restaurante self-service, morto de fome, mas come apenas uma saladinha para economizar. Outro problema causado pelo clímax dessa anomalia socioeconômica é a indisposição. Um amigo pode até te chamar para um show da sua banda favorita que não haverá motivação para sair.

Um dos sintomas mais comuns nesse caso são as bochechas avermelhadas. Você está no meio de um almoço em família na sua casa e seu sobrinho de sete anos te lança aquela pergunta que dedetiza o ar com fraternicida:

- Tio, você está namorando?

- Como? - com uma cara de "É comigo?".

- Perguntei se você está namorando.

- Você quer dizer, tipo, com outra pessoa?

O garoto pensa e responde com ironia:

- É. De preferência.

Você olha ao redor e percebe que não é só o seu sobrinho pentelho que espera a sua resposta. O silêncio na mesa revela os curiosos que estão famintos para se deliciarem, durante aquele almoço, com uma gota de pimenta nos olhos dos outros.

- Não. Por que essa pergunta assim, do nada?

O menino sorri:

- É que eu encontrei isso aqui no chão do seu quarto. É da sua namorada?

Seus olhos se lançam na direção do sutiã na mão da criança.

- Isso é uma roupa íntima? - pergunta espantada a sua avó, causando um eco de comentários dos outros parentes.

- Ah! Hã, isso? Não. Claro que não.

Você toma o suporte estético feminino da mão do garoto, que corre para outro canto da sua casa.

- Parece mesmo um sutiã, vovó - comenta o seu primo analisando a peça íntima à distância.

- Eu tenho uma explicação lógica para isso. Esse sutiã deve ser da vizinha. Eu devo ter pegado sem querer junto com a roupa no varal do condomínio e derrubei no caminho. Sei lá. Essas coisas acontecem.

O reverendo abaixa a cabeça ao imaginar a vida pagã e as orgias que deviam acontecer naquela casa. Sua mãe demonstra preocupação:

- Por isso meu filhinho está tão magrinho.

- Mãe, não é isso. É que... Bem...

Nesse instante, seu sobrinho pentelho passa correndo com mais uma descoberta maravilhosa:

- Legal! Balão! - diz enquanto assopra uma camisinha.

- Me dá um! Eu também quero! - grita outra criança puxando um pacote da tira de preservativos.

- Filho, larga isso! - grita a mãe do garoto.

- Você devia guardar melhor essas coisas - seu primo comenta sorrindo.

- E eu guardo. Estava muito bem guardada dentro da minha gaveta de cuecas.

O reverendo faz cara de espanto:

- Então elas são suas mesmo?

Com certeza essa resposta influenciará sua reputação de "rapaz certinho" e deturpará sua imagem diante da família.

- Hã.... Tá legal. Vou abrir o jogo. São minhas.

A grande família comenta entre si essa afirmação. A máscara caiu. O problema é que quando se está no vermelho tudo que se faz ou diz pode e será usado contra você.

- As camisinhas são minhas, mas são apenas por segurança.

- Aê, primão, pegando geral a mulherada do bairro, hein!

- Não! Não é isso. Que fique bem claro que não tem mulher nenhuma nessa história.

- Não tem mulher nenhuma? - pergunta a mãe com a mão no coração - quer dizer que o meu filho traz homens para essa casa?

- Hein? Não, mãe! Claro que não!

A pobre mulher passou mal com a revelação e precisou do apoio do reverendo para chegar ao sofá.

- Mãe, amarra para mim! - grita a criança estendendo o balão sem receber atenção nenhuma.

- Agora estou entendendo tudo. Esse sutiã então é seu - diz o primo que você não sabe explicar por que não matou ainda.

Vários comentários entre a família. Cochichos e algumas piadinhas. Você olha ao redor, aflito. Sente a pressão arterial aumentar. O globo ocular tentando pular para fora do corpo. Batimento cardíaco acelerado. Chegou ao auge da sua macropaciência. Sua cabeça parece absorver tudo e está a um ponto de explodir.

- Meu Deus! E eu pensando que ele estava magro por conta das mulheres - comenta a sua mãe ainda com a mão no peito e respirando com dificuldade.

Aquelas palavras atingiram seu ponto G e uma espécie de orgasmo de estresse aconteceu:

- Ahhhh! Parem com isso!

O seu grito enfurecido silenciou todos na sala.

- É isso mesmo! As camisinhas são minhas e esse sutiã é de uma garota que dormiu ontem comigo. E o principal: não estou nem aí para o que vocês pensam!

Após a explosão nostálgica, um silêncio. Sua face rígida se desfez e, como um bêbado durante a ressaca, você retomou a consciência de seus atos. A sua fúria passou para outra pessoa que veio em sua direção e te deu um tapa na cara:

- Como você tem coragem de dizer isso depois da noite de antes de ontem? - diz a filha do reverendo enquanto você se recompõe.

A garota sai e a febre passa para o pai religioso, que caminha lentamente em sua direção: aumento da pressão arterial; globo ocular saltando para fora do olho; batimento cardíaco acelerado. E você apresenta mais um sintoma da anomalia: suor frio. O recomendável no caso de apresentar esse sintoma é correr. Correr muito.

No Vermelho - Crônicas para rir e para contar (degustação)Onde histórias criam vida. Descubra agora