Pereira abriu os olhos e reconheceu o teto do seu quarto. Mais um dia e a luta já começava cedo. O relógio na parede da sala provou o que o sol lá fora já denunciara. De pé, ele já estava havia um tempo, mas acordado mesmo só depois do banho gelado e do café da manhã reforçado oferecido por Pilar, sua esposa.
Como já era de costume, só deu tempo de beliscar algumas coisas sobre a farta mesa, enquanto falava ao celular. Ainda com o aparelho no ouvido, abraçou a mulher e lhe deu um beijo apressado. Ela ajeitou sua gravata e ele saiu como em todas as manhãs. Se soubesse o valor desse momento talvez tivesse aproveitado um pouco mais.
O dia foi estressante, mas, para sua sorte, finito. Ele colocou o carro na garagem e, ao fechar a porta, percebeu que o carro não parecia mais tão novo. Após um processo de rotação ao redor do veículo e uma análise apurada, o homem da casa entrou em seu refúgio. Lar, doce lar. Naquele local, estava livre da corrida do cotidiano de um funcionário público. Enquanto afrouxava um pouco a gravata que o sufocava, sentia o cheiro do jantar servido na mesa.
– Hoje eu fiz lasanha – disse uma senhora caminhando em sua direção.
Pilar trocava de empregada como se troca fralda de bebê. Bastava uma merda ser feita e lá estava uma nova, em ambas as situações.
– Olá! Sou Pereira. Você deve ser a...
A velha lhe deu um beijo e a frase ficou inacabada. Mais estranho que uma velha te beijar do nada é saber que aquele beijo não tinha nada de diferente. Ele conhecia bem aqueles lábios. O sorriso belo que deixara de manhã foi substituído por uma dentadura. O gosto de Corega na boca ainda incomodava o rapaz.
– Você deve estar cansado. Vamos comer antes que esfrie.
Ele lavou as mãos e se sentou observando aquela senhora que não tirava os olhos dele em nenhum momento.
– Nossa! Tanta comida! – disse Pereira, desconcertado.
O jogo de pratos e talheres era diferente. A toalha da mesa era mais colorida. Ele afrouxou mais a gravata. Sentia-se sufocado.
– Crianças! Desçam logo! A comida já está na mesa!
A respiração acelerou. A causa não foi o grito da mulher, e sim o fato de não terem filhos. Três crianças desceram as escadas correndo e chegaram à mesa sorrindo. Como isso aconteceu? A gravata estava totalmente aberta, mas continuava sufocando.
– Tudo bem, amor?
Ele gesticulou com a cabeça e sorriu meio desatento com as crianças que pararam à sua frente. Não sabia o que dizer naquele momento sobrenatural.
– Hãã... Oi?
Elas saltaram sobre ele dando um forte abraço.
– Oi, vovô! Trouxemos um presente pra você.
Ele precisava de um tempo para assimilar todas aquelas informações. Pegou o copo e tentou beber um gole d'água. Não dava para engolir aquela verdade crua, mas, quem sabe, com água descia. Pilar, de certa forma, ajudou o marido:
– Depois, meninos. Depois do jantar vocês mostram.
Agora se sentem para comer.
A comida estava ótima, mas ele não reparou no sabor. Não parava de observar aqueles três garotos que contavam como era legal ir durante as férias para a casa da vovó. Pilar mantinha a mesma doçura e o mesmo carinho que o fez casar tão cedo.
– O Vitor disse que vai ficar até mais tarde no trabalho e amanhã ele passa cedo aqui pra pegar os meninos.
Vitor. Aquele nome fazia parte de suas brincadeiras de namoro. Ele dizia que seria o nome do seu primeiro filho e que ele seria um grande jogador de futebol.
No fim do jantar, ele subiu e se olhou no espelho. Os cabelos brancos, as rugas, os olhos caídos... Como aquilo aconteceu tão rápido? A vida passou em um piscar de olhos. Ele saiu do banheiro e olhou alguns porta-retratos na cabeceira da cama. Seu filho, Vitor, cresceu tão rápido... As fotos do casamento retratavam o momento mais especial de sua vida como pai. Passou tão depressa... Pilar terminou de lavar a louça e os dois se deitaram. Pereira reconheceu o teto, mas apenas o teto. O cronograma já estava montado: tinha de acordar cedo e perder mais um pouco de sua história em mais um dia finito.
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No Vermelho - Crônicas para rir e para contar (degustação)
HumorVide a bula antes de usar... Não! Este não é um livro socialista, nem tão pouco faz apologia a algum partido político. Também não se refere à sinalizações de trânsito ou a alguma música antiga da Daniela Mercury. No vermelho, neste caso, é ficar no...