Há quem diga que o mundo está perdido, e que essa geração de jovens não sabe como aproveitar os benefícios que têm. Que a crise que atinge o país é culpa exclusiva dos políticos, e que a população é passiva e conivente com toda essa bandalheira. Eu, particularmente prefiro não opinar sobre o que desconheço, e calar sobre o que sei, mas não me foi perguntado, no entanto se vou exprimir opinião, que seja para dizer que tem olha o mundo de tal forma, o faz por desconhecer a existência de Justino.
Justino, é uma dessas pessoas que poderia ter tudo para reclamar da vida, mas optaram por encontrar a beleza e a satisfação nas pequenas coisas. Há vinte e três anos Justino nascia numa pequena cidade esquecida no interior da Bahia, o décimo filho de uma pobre família que mal poderia sustentar um filho, imaginem outros nove. Gente simples que vendia o desjejum pra comer no almoço, e como jantar servia uma oração ao anjo protetor. O pequeno Justino frequentou a escola, benefício de uma ONG, mas lhe faltava nutrientes suficientes para conseguir ter capacidade de aprender tudo. Ler mesmo aprendeu com quase treze anos, e daí não parou mais, tinha fome de ler, assim como tinha de alimento. Comida não tinha, livros tão pouco, mas tinha os jornais velhos, e os folhetos dos produtos anunciados nos mercados das cidades vizinhas. Não demorou muito e o garoto sabia de cor todas as notícias daqueles jornais antigos, e os preços dos produtos anunciados. As notícias de nada serviam, os preços quase nunca mudavam, o que lhe fez nascer uma ideia, e sem conhecimento dos pais, lá foi Justino para a cidade vizinha, na época tinha catorze anos recém completados, chegando na cidade maior foi direto ao supermercado. Pediu para falar com o gerente, e sem esperar o homem dizer uma palavra ditou todo o folheto de anúncios, e emendou a proposta:
" O senhor me dá um microfone, uma caixa de som pequena, que caiba na minha bicicleta, e vou anunciar as promoções pela cidade. Faço pelo pagamento de setenta reais por semana. Só não trabalho domingo que é dia santo."
O homem aceitou a proposta, por ser boa para o supermercado, uma mão de obra super barata. O garoto se despediu,e retornou para sua casa satisfeito por sua ideia ter sido aceita, e por agora ter um trabalho. É claro que em momento algum ele pensou que aquele era um sub-emprego no qual trabalharia de segunda a sábado, por muito menos que um salário mínimo. Justino desde cedo tentava ver coisas boas onde tudo estava devastado. Seria lindo, dizer que seus pais o proibiram de trabalhar dessa forma, que argumentaram que ele teria que continuar a estudar, mas isso seria uma enorme mentira, a necessidade do dinheiro extra, e seus benefícios eram atrativos demais para quem nada tinha pra comer naquele dia.
Justino trabalhou com afinco nesse trabalho por três anos, sem nunca ter um aumento de pagamento. Duzentos e oitenta reais, e uma caixa de leite era o que recebia do gerente do lugar quando o mês vencia, e assim foi até que as dezessete anos lhe nasceu uma outra ideia na mente. Usando o telefone do escritório do mercado ligou para seu seu tio Laurindo, que há muitos anos morava em São Paulo, em cinco minutos combinou tudo, em uma semana chegaria a maior cidade do país, e ficaria com o tio e sua família. Iria trabalhar muito para enviar dinheiro a seus pais e irmão. Tinha certeza que na cidade grande se daria bem.
Houve protesto dos pais, dos irmãos, e dos familiares que moravam perto.
"Será mais um retirante desprezado na cidade grande, aqui você tem tudo que precisa." Falaram todos da família.
"Se fico aqui morro de fome, todos os dias chego a beira disso, lá há de ser melhor. Se não for? O que terei perdido, já não tenho nada aqui." O jovem pensou sem deixar que as palavras ganhassem voz.
No dia marcado o tio estava na rodoviária a esperar por ele, e Justino desembarcou trazendo consigo uma sacola com suas camisas, uma bermuda puída, e um pedaço de pão duro demais para ser comido. Abraçou o tio que mal lembrava da fisionomia, e recebeu a boa nova que já tinha um trabalho garantido. Trabalharia na mesma empresa que o tio, e seria ajudante de pedreiro. O ordenado não era muito o tio lhe dissera, um salário mínimo, e uma cesta básica, ele achou que era muito sim, e poucos dias ganhava duzentos e oitenta reais para trabalhar seis dias por semana, agora seu salário seria oitocentos reais pela mesma carga horária de trabalho. Sem dúvida poderia ajudar sua mãe, e mostrar que as opiniões da família eram erradas.
O trabalho era muito mais duro que ele imaginava, passava o dia a carregar peso, mas pelo menos ao chegar no fim do dia na casa que agora dividia com os tios, e as duas primas, ele tinha banho quente, comida suficiente, e uma cama para dormir. Olhando para trás ele conseguia ver o quanto tinha melhorado.
Foi mais ou menos nessa época que conheci Justino e sua história de vida. Ele trabalhava na construção de um condomínio residencial, onde um amigo meu era o engenheiro, e quando num dia qualquer foi acompanhar esse amigo na busca por um documento que ele tinha esquecido no escritório da obra, sem querer dei de cara com Justino, em seu horário de almoço, e como meu amigo demorava em seus instruções ao Mestre de obras, puxei papo com o jovem ajudante que estava por ali. Ele como devem imaginar era simples e se entregava fácil a uma conversa, em menos de quinze minutos me contou sua história, sem deixar transparecer nenhum ressentimento por sua sorte de vida. Isso deixou-me envergonhado pois vinha queixando-me ao meu amigo que nos últimos dias não conseguirá fazer uma refeição tranquilamente, bastava que eu me sentasse para comer, que em menos de meia hora alguém vinha a me requisitar atenção, e eu não podia fazer meu período descanso adequadamente. Como eu podia ser tão mimado a ponto de reclamar por não poder descansar após o almoço, quando há pouco mais de um mês aquele rapaz não tinha nem mesmo o que comer. Logo meu amigo se aproximou, e me despedi de Justino, deixando meu número de telefone, após informar ser escritor, e que ele tinha uma história de vida muito boa, da qual queria muito saber mais. E assim foi embora.
Duas semanas se passaram sem eu saber qualquer notícia de Justino, e confesso que nem mesmo me lembrava mais do jovem ajudante de pedreiro, quando meu celular recebeu uma chamada de um número desconhecido. Reconheci a voz esquecida no subconsciente, assim que ele disse:
"Oi, e o senhor escritor? Aqui sou eu"
Eu sabia de quem se tratava, mas achei graça de ele imaginar que alguém pudesse o reconhecer apenas com com essa informação. Ficamos um tempo conversando, e fiquei feliz em saber que ele estava retornando aos estudos. Segundo ele meu amigo dissera que ele precisaria de mais estudos caso quisesse melhorar de cargo. Por ele mesmo, estava bom do jeito que estava, ele conseguia ter dinheiro para comprar suas pequenas coisas, enviar algum dinheiro para a família, e dar uma força na conta de energia, da casa do tio, mas os tios tinham conversado com ele, e dito que ele era jovem e precisava querer ser mais na vida. E se era para ser mais, e deixar os tios felizes, ele escolheu ser engenheiro. Eu disse que teria mesmo que estudar muito, e se esforçar. E ele respondeu que ele tinha passado a vida toda se esforçando por um pedaço de pão pra dividir com os irmãos. Que mal faria se esforçar um pouco mais para se formar engenheiro? Ficou óbvio que a determinação necessária ele já tinha, era um ótimo ponto de partida.
Nós conversamos muitas outras vezes, até que perdemos o contato, mas jamais esqueci de Justino, o garoto esfomeado do interior da Bahia, que migrou para São Paulo, e plantou em si o sonho de ser Engenheiro Civil. Foi tanto assim que há dois anos atrás quando vi um homem trajando camisa listrada, calça jeans e capacete branco, em uma construção no Centro da cidade, de imediato soube que se tratava de Justino. E pedi a um dos trabalhadores para me anunciar a ele que veio feliz ao meu encontro. Fomos a um pequeno café na Ouvidor, para conversarmos melhor, e nos atualizarmos quanto aos últimos anos. Falei de meus livros, e contos, os quais ele afirmou ter todos, fiquei feliz por ele ter lidos meus livros, mas também triste porque ele continuará a me acompanhar enquanto eu me perdi dele. Ele me contou que terminou os estudos no supletivo ( EJA) um ano depois de perdemos o contato, e em seguida entrou na faculdade de engenharia civil, com bolsa do governo. No meio tempo da entrada da faculdade e a formatura, conheceu uma boa mulher, casou-se e saiu da casa dos tios. Fazia dois anos que estava formado, e trabalhando na empresa do meu amigo. Disse que as pessoas que o conhecem agora não acreditam que ele entrou na empresa como um ajudante de pedreiro analfabeto funcional, e que realmente chegou a engenheiro, as pessoas pensam sempre que é uma história de canteiro de obra. Mas eu sei que é verdade, que aquele garoto que conheci num começo de tarde, tão grato pelo que tinha até ali, no qual os tios plantaram uma semente de futuro, alimentou essa semente, e acreditou em si mesmo, e venceu na vida. Depois de uma hora de papo nos despedimos com seu convite para que eu fosse a sua casa para conhecer sua esposa e filha. Oito anos após nosso primeiro encontro, eu me despedia de uma pessoa totalmente diferente. Alguém que me fez ter esperança no futuro.
Se todos conhecessem Justino, ou alguém como ele teriam um pouco mais de esperança no futuro também.
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Em-Contos e Prosa
Short StoryPequenos contos sobre o cotidiano, e pessoas comuns... Você vai se encontrar em algum deles...