Perdida na escuridão

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Nem sempre a vida nos sorri. Muitas vezes as trevas tomam conta do nosso caminho durante demasiado tempo. Deixar de ter esperança é inevitável. Deixar de querer viver é uma consequência. Uma consequência de não lutarmos de volta. Uma consequência da desistência. Subitamente vemos um pequeno raio de sol a espreitar pelo buraco da persiana. O coração transborda esperança. Mas no minuto a seguir vem uma nuvem e com ela vem a chuva. A esperança foge pelo pequeno buraco por onde entrou e a persiana é fechada. Instintos. O nosso instinto de afastar tudo o que nos magoa. Como o fogo. Depois de queimarmos a mão não voltamos a coloca-la nas labaredas. Depois da esperança nos ser levada, depois de deixarmos de ver o chão, depois de perdermos a noção da nossa identidade fechamos a persiana. Para que não volte a entrar nenhum pequeno raio de sol. Se ele não entrar também não nos poderá ser retirado, não é verdade?

Este sitio traz me arrepios. É escuro e sombrio, mergulhado nas trevas. Não posso tirar os olhos do chão. A probabilidade de cair numa rasteira é extremamente elevada. Sim, porque nesta cidade ninguém está bem com a felicidade alheia. Afundar as pessoas no meio da escuridão é mais forte do que um instinto de sobrevivência. Não percebo. Cada passo dado faz me duvidar da minha essência. Não pertenço aqui. Estarei a ser a paranóica? Talvez já me tenha tornado num deles, e não me tenha apercebido. Cada sitio, cada lugar, cada canto desta cidade me lembra do meu passado. Tanta coisa que queria enterrar e não consigo. Tanta coisa que me é forçosamente relembrada, revivida. Os rostos que eu só queria apagar. O passado que eu só queria mudar. Vozes na minha cabeça que me deixam sem fôlego. Sobreviver é cada vez mais difícil. Cada dia que passa este ambiente pesa mais nos meus ombros. Cada dia que passa esta vontade de fugir aumenta. Fugir dos problemas, das caras conhecidas, dos lugares que me assombram, do sitio que me viu crescer, do sitio que eu só desejo esquecer.

Quando finalmente decido me levantar, quando finalmente tenho alguma força para encarar o mundo ao meu redor, tudo o que os meus olhos alcançam me fazem querer voltar para aquele pequeno quarto que me isola da realidade. Constantemente confrontada com novos caminhos e encruzilhadas, labirintos de emoções que me deixam esgotada. Entendo agora o quanto estou perdida. Tantos avisos ignorei, tanta ajuda recusei. Estava cega. Se o arrependimento matasse... Não sei que caminho seguir, nenhum parece ser a solução. Não há nenhuma luz ao fundo do túnel. Não há nada que me indique uma saída.

E de repente, do nada, percebo onde estou. Dezenas de lembranças passam pela minha cabeça ao mesmo tempo. Os rostos das pessoas que afastei, dos corações que parti, daqueles que magoei. As ajudas que poderia ter tido. Os sorrisos que eu evitei. As lagrimas que eu aguentei. Não podia dar parte fraca, pensava eu. Mais uma vez estava errada, eu precisei de toda a ajuda do mundo, ao invés preferi manter a máscara. Sem me aperceber, destruí-me a mim própria. E agora? Agora estou no fundo do poço. Sozinha. Porque eu assim quis. Isolar-me parecia a melhor escolha. No entanto o ser humano não consegue viver isolado. A comunicação é essencial. E cá estou eu mais uma vez. Paranoica, porque eu assim escolhi.

Sinto falta dos tempos do passado. Num passado em que era uma criança simples, inofensiva e extremamente feliz. Saudades do tempo em que via a beleza do mundo nas mais pequenas coisas. Saudades do mundo que nunca me desiludia. Como poderia eu, naquele tempo, desejar crescer? Verdade seja dita, imaginação nunca me faltou, e como tal, tudo o que eu imaginava para a este tempo da minha vida era mágico. Rapidamente me apercebi que tempos de magia e fantasia só em sonhos. Nos sonhos daquela simples criança que uma vez fui, e que dava tudo para voltar a ser. Saudades do brilho do meu olhar que toda a gente admirava. Das gargalhadas espontâneas que faziam cada dia valer a pena. Arrependimentos? Só um. Não ter aproveitado tudo com mais intensidade ainda.

Talvez, na realidade, seja uma adolescente normal. Talvez esteja apenas demasiado focada na obscuridade para reparar nas coisas boas da vida. Talvez o pessimismo me esteja a comandar neste momento. Talvez tudo isto seja apenas uma fase. Uma fase demorada, mas que com o tempo, tal como tudo, terá o seu fim. Só tenho que ser paciente. Só tenho que recuperar a esperança.

Olho ao espelho e fico confusa. Não sei ao certo o que vejo. O meu reflexo irradia um conjunto de sentimentos desconhecidos. Por um lado, só quero manter-me afastada de tudo e de todos, por outro só quero alguém que me compreenda. Histórias de amor não correspondido há muitas, as minhas enquadram-se todas nessa arrebatadora categoria. Eu compreendo, afinal, nem eu me compreendo a mim própria, como poderá alguém do mundo exterior compreender? Eu mesma sou um desafio. E hoje em dia, as pessoas querem algo fácil e descomplicado, tudo aquilo que eu não sou. O meu mau humor matinal, a minha arrogância ou simplesmente a minha frontalidade não são muito apreciados. Por isso estou sozinha. Porque comecei a pensar mais em mim do que nos outros. Porque decidi não mudar por ninguém a não ser por mim. Porque deixei de dar ouvidos àqueles que opinam apenas com o objetivo de se sentirem melhor com eles mesmos. Porque em primeiro lugar estou eu.

Têm sido dias monótonos e aborrecidos. Sem qualquer novidade ou noticia. Mais uma semana passou a correr. Pouco se aproveita. Esperava um secundário melhor. Um secundário que valesse a pena recordar. A confusão dos dias de chuva, a ''salgalhada'' do autocarro, a escola. A alegria de uns, a tristeza de outros. Olho ao redor e vejo toda a gente a conversar, a rir, a construir memorias. E ali estou eu, num canto, a ouvir a minha música. Porque não aguento com ninguém. Porque ninguém aguenta comigo. Há um constante bate bocas no ar. Algumas são para mim, mas decido ignorar. Dizem que não me importo com ninguém. Chamam-me interesseira. Adjetivam-me com ''fria''. Nada ao qual já esteja habituada. Mas alguém se dá ao trabalho de perguntar o porquê de eu ser assim? O porquê de me fechar em copas? Ninguém. Como já era de esperar. Porque não existe uma única pessoa que se interesse por tentar realmente conhecer outra. Porque não há ninguém capaz de tentar ajudar sem esperar nada em troca. Porque o mundo já não é o que era. Dizem que nas antiguidades o mundo era a preto e branco, sem cor. E agora? No que se tornou este mundo?

Dizem que no abismo encontramos as caras de quem realmente vale a pena. E do nada apareceste tu. Não sei onde estiveste este tempo todo. Só sei que não te quero comigo. Não quero, por isso continuo com os meus auscultadores, na esperança que vás. Teimosia é algo muito predominante na tua personalidade, isso já detetei. Sim, porque continuas aí, à minha frente, de braços cruzados. Pelo menos és paciente, ainda não desististe. Quem estava a ficar impaciente era eu. E tu quebraste logo esse ténue limite da minha paciência no momento em que arrancaste os auscultadores dos meus ouvidos, interrompendo a minha música preferida. Como se não bastasse, usaste os meus auscultadores para ouvir a minha música. Quebraste a minha zona de conforto e obviamente irritaste-me até à ponta dos dedos dos pés. Mas eu decidi manter a calma. Prometi a mim mesma que ia ser mais sociável, pelo menos ia tentar.

-Tencionas devolvermos ou? - perguntei.

- Só depois de te apresentares.

Revirei os olhos. Parei a música. Respirei fundo.

- Ana.

- Miguel. Será que vou ser eu quem vai conseguir chegar ao fundo dessa pedra?

- Nem te devias dar a esse trabalho.

- Se calhar não devia. Mas cativaste-me desde o primeiro segundo que te vi sozinha naquele canto por isso agora não vou desistir.

E não desistiu. E foi ele quem conseguiu chegar às profundezas daquela pedra. Foi ele quem escavou tão fundo para ajudar a reconstruir quem uma vez fui. Quem eu era, antes das trevas. Por isso estar-lhe-ei eternamente grata.

Apesar de todos os meus esforços para que ele fosse, ele voltava sempre. Por trás de uma gargalhada lá estava ele. A enxugar as minhas lágrimas, lá estava ele. Para festejar as minhas conquistas e para brindar às minhas derrotas. O Miguel estava sempre presente. Foi um sentimento estranho, partilhar a minha vida com alguém sem me sentir absolutamente sufocada. Estava realmente a fazer progressos. Estava orgulhosa de mim mesma. Estava bem comigo própria, e o quanto eu me sentia feliz!

Hope - A rapariga que queria conquistar o mundoOnde histórias criam vida. Descubra agora