ESPANCAMINÔNIAS

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1998
Fevereiro
Eu não podia imaginar o que estava para acontecer naquele ano. Nos próximos meses eu vivenciaria uma das maiores pragas que já habitou (e ainda habita) a face da Terra. Naquele ano, sem qualquer aviso abateria-se sobre nós a peste maior, a pior das febres. Pior que a Bubônica, mais terrível que a Amarela:

ESPANCAMINÔNIAS.

Estávamos na escola. Início do ano letivo. Felizes jovens na faixa dos 17 anos. Todos inocentes e sem a menor noção do perigo que corriam dentro dos corredores daquela escola. O festim diabólico aproximava-se e nós ainda sorríamos aos berros quando o ser entrou na sala. Calamos imediatamente ao ver arrastar-se para dentro da sala aquela figura pequena, feia, de pele aparentemente áspera, cabelos ralos, ar soturno e rancoroso: ESPANCAMINÔNIAS.
O nome estranho nos assustava. A figura nos assustava! Mas estranhamente, o novo professor de matemática era "gente fina", como falávamos. Mostrava o conteúdo da aula, fazia um exemplo pedia uma pesquisa que nunca cobrava e voltava-se para nós num tom risonho. Conversava com a turma de igual pra igual, sorria, contava histórias de sua juventude longínqua, de sua esposa feia e de seus filhos super inteligentes. Dividia sua vida conosco e em poucos dias, era o professor favorito. O que me intrigava e que ninguém parecia perceber, era que nós quase não tínhamos aula.

"Esse é o conteúdo. Vejam o exemplo. É assim que se resolve. Façam uma pesquisa. Vamos falar da vida." - sequenciava Espancaminônias sempre antes de começar a palestra familiar.

Março
Primeira prova do novo professor de matemática.
As folhas são entregues e devem ser mantidas viradas para baixo até a ordem do mestre. Poucos segundos depois do "Podem virar a folha! Boa prova!", ouviu-se a voz de uma colega de turma:

"Professor, o sinhor num insinou isso! Eu exijo os meus direito" - reclamou.
"Você fez alguma das pesquisas que eu mandei, menina? - pergunta sorrateiro, de costas para a turma.
"Não, mas..."
"CALE-SE!!! NÃO EXIJA DIREITOS QUE VOCÊ NÃO TEM, AMEBA!" - gritou ele, ridicularizando a aluna fadada a tirar zero.

Foi então que percebi o plano ssecreto de Espancaminônias. Ele ensinava o básico, pedia pesquisas do intermediário e cobrava na prova o astronômico.
Foi naquele mês que todos tiramos zero. Meu primeiro zero. Uma lágrima... Não a última!
Depois do acontecido, passamos a ficar calados na aula de matemática e devido às nossas notas decidimos que algo deveria ser feito. Formaríamos grupos. Juntos éramos mais fortes.

Abril
As provas de matemática eram crimes com requintes de crueldade. Do lado de cada questão ele punha de qual concurso ele havia retirado a questão. Mas nossos grupos estavam prontos para o combate: GRUPOS DE PESCA. Cada um levou um tipo de cola diferente: baralhinho, cópia reduzida, mão indiana, borracha tatuada, caneta mágica, canela pintada, sola da sorte, nuca amiga, e o descarado caderno aberto. Mais uma vez falhamos. A sala ficou dividida entre os que tiraram zero e os que não entregaram a prova. Espancaminônias que não era tolo, entendeu nosso agrupamento.

Maio
A nossa cola começou a dar os primeiros resultados. Conseguimos tirar cinco e alguns até chegaram à incrível marca de seis pontos. Espancaminônias deixou de dar aulas. Chegava, sentava, dizia o conteúdo da aula, lia, de cabeça baixa, um livro qualquer pelos próximos quarenta e cinco minutos, levantava-se e saía.

Junho
Voltamos a estaca ZERO.

Julho
Saímos de férias jurando que íamos fazer cursos de matemática e estudar como loucos.

Agosto
Voltamos às aulas sem ter aberto os cadernos um único dia.
Espancaminônias continuou seu reinado tirano. Eu não aguentava mais tirar zero. Ficaria reprovado pela primeira vez. Peguei o conteúdo e, loucamente, estudei. Não entendia o motivo de não ter feito isso antes. Eu estudava, mas não loucamente. Faltava a loucura. LOUCURA!!!!
Setembro
"A prova deste mês será diferente!" - bradou o monstro numérico.
Eu não me importei. Estava preparado para todas as questões.
"Haverá apenas duas notas possíveis: zero e dez. A prova tem apenas uma questão!" - sentenciou a fera cartesiana.
Senti o cheiro da morte acadêmica. Eu tinha estudado, mas uma questão apenas era muita crueldade, até pra ele.
Provas entregues. Desespero à mesa. Era cada um por si! Comecei a olhar para aquela questão imensa e , de repente, comecei a... comecei a... Meu Deus!!!!! Comecei a reconhecer aqueles números, aquela ideia, aquele problema. EU SABIA A RESPOSTA. Era imenso, mas eu saberia responder. Comecei a rabiscar aquela folha branca rapidamente, como se o tempo fosse acabar sem aviso. A resposta aparecia na folha como uma música inesperada, que se ouve ao longe e demora-se a entender. RESPONDI! "Tirei DEZ!" - gritava eu em pensamento.
No momento do término, percebi que ainda tinha quinze minutos e resolvi escrever tudo de novo em outra folha pra entregar uma prova bonita. Passei a limpo. O tempo acabou e vi o desespero de meus amigos. Gritos, terror, choro, lamentos, exigência de direitos...
Levanto com três folhas na mão: A prova, a resposta e o rascunho. Aos prantos Arilendia Luyzza pega no meu braço:

"Eu tirei zero de novo, meu padrasto vai bater minha cabeça na parede... de novo!"

Compadecido, olhei pros lados e enteguei à ela meu rascunho:

"Coloque seu nome nesta folha! Entregue-a!"

Arilendia sorriu ridícula.
Fui pra casa feliz da vida. Tirei dez, tinha certeza e ainda fiz uma boa ação.

Duas semanas depois...
Entrega de provas.

"Muitos zeros e UM dez!" - sorria o macabro mestre.
Fiquei feliz em ouvir aquilo. Minha prova, meu dez! Arilendia foi descoberta, eu logo pensei.
Todos foram chamados para receber seus zeros, ditos em voz alta pelo tirano e claro, o monstro ia me deixar por último para me chamar de exemplo.

"Ed Edson! ZEEEEEEEEEERO!"

Levantei para pegar minha prova, mas não acreditei na nota. Não era possível!
"Ed Edson, você é uma vergonha! Você é pior que uma tilápia apoplética! Pescou descaradamente! Achou que eu não ia perceber que essa folha limpinha era uma cola???? UMA PESCA???? Hein????? VOCÊ É O REPRESENTANTE DA TURMA EM BURRICE!! SER UNICELULAR MALDITO"

E continuou dirigindo-se à turma:
"Venha cá, Arlendia Luyzza!EXEMPLO DA TURMA!"

NOTA:
Espancaminônias foi retirado do grupo docente daquela escola naquele mesmo mês devido à quantidade de reclamações. Fizemos provas substitutivas para todas as provas do ano e nunca mais ouvimos falar do famigerado matemático.
 

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⏰ Última atualização: Nov 05, 2016 ⏰

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