Durante | parte 1.

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Acordei com a pressão das patas de Marte sobre minha barriga. Acariciei meu gato, sonolenta. Percebi uma pequena fresta de luz iluminando meu quarto e imaginei que já deveria passar do meio-dia. Mesmo com horas de sonos, me sentia cansada. Marte se aconchegou entre minhas pernas e eu me espreguicei com calma, esbarrando meu braço no corpo ao meu lado.

Meus olhos não acreditaram no que viram e no mesmo instante, tive um súbito colapso de memória. Tudo ficou claro demais no meu quarto.

As costas nuas de Gustavo subiam e desciam lentamente. As tatuagens em seu braço estavam visíveis sobre o lençol amarelo. Sua pele morena era um ótimo contraste em minha cama.

Me odiei por pensar nisso. Me odiei por acordar ao lado dele. Mas ao mesmo tempo, era tão bom tê-lo perto de mim mais uma vez. Depois de tanto tempo. Mas... Céus! Eu havia cometido um grande erro. Eu sabia para onde o meu erro me levaria. E também sabia o que tornar Gustavo uma constante causaria. Ele não podia se tornar minha rotina novamente.

Levantei rapidamente e vesti uma camiseta que encontrei em meu armário. Peguei meu gato no colo e deixei meu quarto, com uma tentativa falha de não desviar meus olhos para sua silhueta adormecida. Gustavo era um erro, mas ainda conseguia ser um erro tão bonito...

- Marte, olha só na encrenca que eu me menti, bebê – falei baixinho, enquanto o carregava até a cozinha.

Senti-me um pouco zonza com toda a claridade da cozinha e coloquei meu gato no chão. Espreguicei-me mais uma vez, evitando pensar em meu ex-namorado e decidi me concentrar em dar comida à Marte e preparar minha xícara de café. Uma única xícara, para uma única pessoa. Para mim. Assim que me agachei para servir a ração, ouvi passos pesados se dirigindo à cozinha.

- Bom-dia – Gustavo resmungou, sonolento. Virei-me para observá-lo e sorri, mesmo sem querer, para o seu cabelo preto bagunçado. Ele retribuiu meu sorriso, mostrando seus dentes, o que me fez cair na realidade e fechar a cara rapidamente. Passei a mão em meu cabelo e me dirigi até o armário, procurando pelo café.

- Oi – falei, fingindo desinteresse. Eu precisava afastá-lo, precisava dar um basta nisso. Eu precisava... Um arrepio percorreu meu corpo quando senti sua mão envolvendo-me pela cintura e sua respiração quente em minha nuca. Deixei cair um pacote de bolacha no chão e ele riu. Seu efeito sobre mim era extremamente forte.

Eu estava desconcertada. Com tudo. Por ele.

Relutante, consegui me afastar dele. Peguei o pacote e ofereci-o à Gustavo, que estava com uma expressão divertida em seu rosto.

- Não faça mais isso – pedi, com a bolacha entre nós. Ele apenas riu debochado e tirou o pacote de minhas mãos, abrindo-o logo em seguida.

Tentei prosseguir com meu plano de tomar uma xícara de café, ignorando-o. Eu tentei. Gustavo se encostara a bancada da cozinha, comendo o meu pacote de bolacha recheada enquanto me observava preparar meu café. Agradeci mentalmente por ele não ter pedido uma xícara, pois provavelmente me recusaria a fazer.

Tomei meu café com calma e me encostei na mesa da cozinha, ficando frente a frente com ele. Estaria mentindo se dissesse que não queria observá-lo, porque eu queria. E queria ainda mais entender o que estava acontecendo entre nós nessas últimas horas.

Alguns flashes da noite invadiram minha cabeça e me permiti lembrar dos detalhes de como viera parar na cama junto de Gustavo e de Marte. Meus lábios estavam dormentes de tanto beijá-lo no banheiro do bar. Não lembrava qual fora a última vez que um beijo havia sido tão bom e tão eletrizante. Sem querer parecer clichê, mas eu podia sentir a intensidade da corrente elétrica que percorria meu corpo enquanto a boca de Gustavo estava colada na minha. Não saberia dizer se haviam passados segundos, minutos ou horas – estava totalmente entorpecida –, quando Gustavo me afastou dele e sem dizer nenhuma palavra, me segurou pela mão e me arrastou para fora do bar. Não tive tempo de me despedir de nenhuma alma bondosa. Apenas fui carregada por ele. Fiz uma careta para minha xícara de café ao perceber que meu único pensamento quando entramos no primeiro táxi que apareceu era de que, naquele momento, eu era mais uma vez inteira e só para ele. Gustavo me fitava com seu meio-sorriso no rosto. Não desviei meu olhar.

Lembro de ter passado meu endereço para o motorista e me sentei afastada de Gustavo. Não trocamos palavras, mas sua mão pousou sobre a minha durante todo o caminho pelas ruas movimentadas. Não me recordo se tive uma crise existencial enquanto observava o movimento pela janela. Coloquei a culpa na bebida. Me lembro mais de ações do que de fato pensamentos; apenas alguns se sobressaiam, mas eu sabia que estava eufórica demais para me preocupar com os alertas em minha cabeça avisando que eu iria me arrepender pela manhã. E cá estou, arrependida. Mas quem disse que na noite passada eu dera a mínima para os alertas?

Somente as expressões de Gustavo e seu maldito sorriso conseguiram me persuadir de tal maneira que nenhuma palavra do meu subconsciente me fez parar antes de estarmos diante a porta de meu apartamento, mais uma vez aos beijos. E, por causa disso, Gustavo era um erro.

Alguns meses antes do nosso término, Gustavo estava distante. Eu tentava trazê-lo de volta para a realidade, trazê-lo de volta para mim. Tentava de todas as maneiras, mas nunca fui levada em consideração. Era eu quem sempre corria atrás dele, e nunca deslumbrei nem sua sombra atrás de mim. Desde o começo, fora eu quem lutava para continuarmos fortes depois de alguma briga sem motivo concreto. Era sempre eu quem pedia desculpas, quem estava pronta para evitar qualquer desentendimento. Durante cinco anos, minha submissão à Gustavo sempre resolvia as coisas. No final, sempre ficávamos bem. Mas chegou uma hora, que eu me cansei de não ser retribuída. Me cansei de não ser valorizada pelo homem que eu mais amava. Me cansei de pedir desculpas por seus erros.

- Você quer um café? – me peguei deixando escapar tal oferta. Apertei com força a xícara em minhas mãos.

Gustavo apoiou sua bolacha na bancada da mesa e se aproximou lentamente de mim. Com um sorriso pequeno, tirou a xícara de café da minha mão e a deixou de lado, segurando com delicadeza meu rosto sobre suas mãos. Senti seu dedão passeando por minha bochecha, mas apenas me concentrei no seu olhar sereno, mas que no fundo era tão mais complexo... Tão mais difícil.0

Eu o conhecia, eu o decorei. Sabia que a serenidade que ele demonstrava agora escondia um mar de complicações por dentro.

Sua boca pousou sobre a minha, e mais uma vez me desmontei nele.

Sempre gostei das coisas em seu lugar certo. Hora marcada é algo muito importante para mim. Minha mãe me levou em diversos médicos quando era pequena, pois acreditava que eu tivesse transtorno obsessivo-compulsivo. Não houve nenhum diagnóstico. Eu apenas dizia a ela que gostava das coisas arrumadas e feitas no horário certo. Organização era minha primeira regra. Talvez fosse culpa da minha lua em virgem.

Já Gustavo nunca deu a mínima para rotinas. Não tinha hora para acordar, muito menos para dormir. Fazia o que bem entendesse, quando bem quisesse. Ele era o meu oposto. Enquanto eu era organização, Gustavo era caos, desconcerto. Desordem. E tudo que eu sempre procurei fora um pouco mais de estabilidade, mas o encontrei e ele me fez fugir de mim mesma.

Seus planos nada convencionais e feitos em cima da hora apagavam qualquer respingo de plano que eu estivesse formulando. Eu o amei profundamente. Gustavo fora o meu primeiro amor. Mas o amei tanto, que me sentia cada vez mais longe de mim mesma com o passar dos anos.

Não estava à procura de retomar um relacionamento que para dar certo, eu precisava abdicar de quem eu era. Não estava... Não é?

- Gustavo, para...

- Fica comigo, Íris. Só hoje – ele pediu entre beijos. Suspirei e fechei os olhos.

Fiquei.

***

Voltei :-)

Espero que gostem! Deixem seus votos e comentários para eu saber o que estão achando.

Até a próxima (espero que não demore tanto dessa vez, né?)

xx

Agora Eu Quero IrOnde histórias criam vida. Descubra agora