Na sacada do seu quarto, cujas luzes estavam apagadas, Deveraux se debruçava na adornada grade que circundava sua bela varanda, e aspirava o ar fresco e noturno.
Ah, a noite perfumada, adocicada, libertadora, onde ela podia andar livremente, e tornar-se o que era de fato, sem precisar temer a si mesma, nem mesmo a morte que poderia causar em quem se aproximasse demais dela. A escura noite, onde lhe era dada, pela treva antiga que a remodelou à sua semelhança, a nefasta e adorada oportunidade de caçar, caçar, e caçar! O prazer quase incomparável da caçada, só superado pelo aroma e pelo calor do sangue recém-derramado.
De repente a mulher se ergueu, como um grande felino que escuta e fareja o que não se pode ver. Os cabelos batidos pelo vento, que soprava desde lá, do mar tão escuro que abraçava e se misturava com o céu, sem horizonte, apenas pintalgado aqui e ali por aviões sobrevoando iates e barcos de pesca, todos com suas luzes diminutas, pequeninos cometas vagando naquela massa imensa de vazio.
Deste jeito, com o corpo inteiro em riste, feito rocha que tenta resistir ao poder insuperável das ondas, ora Deveraux fitava a galáxia de luzes que a mística e efervescente cidade de Salvador se tornava à noite, ora a agente federal mirava uma de suas mãos, que ela abria e fechava, com músculos tensos. Fez essa alternância rápida umas duas vezes, e parou, depois de mover o olhar uma última vez do punho, desta vez cerrado, para a cidade estelar que se espraiava lá embaixo, à frente de Mônica e sob o firmamento quase sem estrelas. Seu rosto, que também havia ficado tenso, relaxava.
Agora que o governo de seu país soltou suas amarras, e permitiu a ela ir à caça de alguns malfeitores, Deveraux poderia, enfim, esquecer o que lhe era negado na vida, esquecer que estava morta até mesmo para o calor do amor, e caçar os ímpios, feito ela, mas não iguais a ela. Mônica era o lobo, e eles, cordeirinhos malvados.
Avisada por um discreto tilintar e a consequente mensagem em seu celular de que uma colega agente vinha agora mesmo até seu quarto, buscá-la, Deveraux atravessou a escuridão do aposento, como se ele estivesse plenamente iluminado, e abriu a porta de entrada, onde uma mulher de meia idade — uma meia idade que Mônica jamais experimentaria, ela sentiu o fato com certo amargor — estava à espera e foi dizendo, séria, enquanto seus olhos perscrutavam as trevas atrás da outra mulher:
— Sou a agente que vai se passar por sua assistente, e te levar até o seu táxi, me chamo Glaucia Mendez...
— Sei quem você é, Glaucia. — Atalhou Mônica, no entanto usou um tom gentil, não arrogante. — Não nos vimos ainda, mas faço meu dever de casa também, e sei quem está na operação comigo. Estou quase pronta. Ou melhor, vamos indo, posso acertar o batom no elevador.
Glaucia não era bonita, não no sentido mais popular. A agente Mendez fazia o tipo forte, firme, atraente, talvez, mas não era do tipo que fazia os homens virarem a cabeça, ao menos não sem estar usando um biquíni, visto que, superficialmente, parecia estar com tudo no lugar. Talvez por isso, por ela não ser tão jovem nem tão bela, ponderava Deveraux, a outra agente a olhasse com aquele desprezo contido. Ou seria medo? Nem sempre Mônica conseguia definir bem estas coisas, especialmente excitada e focada como estava em sua missão, prestes a começar. Ela fechou atrás de si a porta do quarto, e seguiu Mendez pelo corredor, em direção ao hall dos elevadores, enquanto pensava nos eventos do último dia.
Quase vinte e quatro horas atrás, e cerca de duas horas após receber os dados do encontro com o senador Figueiras, e comunicar o contato ao Comando dos Dragões em Brasília, veio a ordem para prosseguir, e a ação começou. Primeiro com um fervilhar de preparativos, veículos conferidos e abastecidos, equipamentos de escuta testados e retestados, armas municiadas e revisadas também inúmeras vezes, todos os envolvidos repassando suas posições e suas ordens, e, por fim, poucas horas antes do encontro com seu alvo, a agente Mônica Alencar Deveraux revisou o resumo da missão, e foi preparada: sistemas de escuta microscópicos foram aplicados sobre a pele dela, e cobertos com adesivos que os tornavam virtualmente invisíveis. Um fone de ouvido, também imperceptível, dava a agente o retorno, para que, durante a missão, ela pudesse receber instruções. Outros equipamentos de escuta e filmagem foram aplicados à bolsa de aparência cara e elegante que ela, fazendo-se passar pela muito bem sucedida hacker Carmina, levaria consigo.

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Mônica
FantasyMônica era uma moça ingênua, sensível e muito inteligente, com todos os anseios e sonhos de uma jovem de sua idade na década de 70, quando ela se envolveu, quase acidentalmente, com assuntos considerados ameaçadores no período do regime militar bras...