Curioso como o mundo, do jeitinho que ele é, faz com que o mal flua, feito veias rubras, pelo meio de tudo que, para os humanos, é bom. O táxi levava Mônica agora por uma abastada zona litorânea, um recanto situado lá para os lados do Itaigara, onde alguns poucos realizavam os sonhos materialistas, de conforto e status, que quase todos os outros bilhões dos autointitulados homo sapiens da Terra almejavam e labutavam diariamente para alcançar. Na maioria das vezes — a longa vida de Deveraux lhe permitia ver isso — essa luta diária era completamente inútil, visto que a imponderável sorte contava mais do que os humanos gostavam de admitir. Além disso, ela sabia que a felicidade, na real, ou ao menos o pouco dela que se pode alcançar neste mundo, não tem quase nada haver com ter, mas com saber fazer uso.
Existem ricos inocentes, inerentemente bons? Claro que sim, a agente Deveraux podia farejá-los aqui e acolá, pérolas em um oceano amoral de ricos e pobres. Mas existem linhagens abastadas inocentes? Não, ela acreditava que não.
Riqueza que perpassa gerações será, estatisticamente e, no caso de Mônica, por observação prática, embebida em sangue. Este sim raramente não será sangue inocente. O que não invalida a inocência de um suposto descendente da família abastada que amealhou fortuna por caminhos fáceis, mas ainda assim larga sobre os ombros do coitadinho a responsabilidade sobre as vidas que serviram de combustível para a construção de sua herança.
Enquanto seu carro a conduzia por belas casas, ricos chalés e suntuosas mansões a beira-mar, Mônica podia sentir, junto com a maresia, o horror de que muito pouca gente ali ligava, de fato e na prática, para responsabilidades. Sim, o horror, o horror de que, neste mundo, uma simples omissão, um simples "deixar correr frouxo", uma quase universal "vista grossa", ou um corriqueiro "eu não posso fazer nada" serem atitudes tão ou mais capazes de destruir vidas quanto o lançamento de bombas.
Claro, essa indiferença egocêntrica não era nenhuma exclusividade de lugares abastados, mas lá era onde havia mais gente fazendo isso indolentemente. Isolar-se em uma atitude do tipo "não posso fazer nada para mudar o mundo" dentro de uma mansão é poder fazer isso sem ser acossado por necessidades as mais básicas, sem um envolvimento pessoal com a coisa. Então deve ser mais fácil, até natural, ponderava a velha jovem mulher, ignorar a própria parcela de responsabilidade quanto à miséria, quando se é rico. E, que piada macabra, que ironia, o rico é justamente o que mais possui meios, recursos e influência para ajudar a melhorar as coisas.
Assim Deveraux via o mundo havia mais de seis décadas, e assim era por lá, naquele bairro de endinheirados, onde de todo o descaso, de todo desinteresse pelo outro, de toda a corrupção ativa e passiva que Deveraux podia farejar quase como se fosse um odor pútrido, havia um rastro intenso e especial de ganância e ódio bem no meio daqueles lares de importantes membros da elite. Essa emanação maligna se comportava como um torvelinho de fumo obscuro e sinistro, coleando entre as ricas casas daquela praia, entre velhos barões e inocentes herdeiros, a serpente monstruosa visível apenas aos olhos de Mônica, que era a filha do éter e das trevas. Essa obscuridade retorcia-se, qual pavoroso monstro, capaz de deixar desconfortável até mesmo Deveraux, e se acumulava justamente na direção para onde seguia o táxi dela.
Era Figueiras. Aquele homenzinho ruim tragava a escura energia do abismo do mal, como um recém-nascido suga o ar. Será que ela, Mônica, tinha irmãos sobre a Terra? Seria um homem comum capaz de ser tão cruel, desumano e malévolo que tivesse, apesar de sua mortalidade, parte verdadeiramente com as trevas que circundam o mundo? Ela já havia enfrentado o mal em homens e mulheres que, de tão desumanos, mereceram tudo que Deveraux fez com eles, e o senhor Arquebaldi não deveria ser muito diferente desses outros monstros. Mas ela sentia em seu coração um frio cortante e se via obrigada a consentir no fato de que nunca havia visto a maldade se coagulando e aglutinando tanto assim, coesa como o próprio abismo da morte, em um só ponto. Arquebaldi Figueiras era, no mínimo, um dos piores homens que Mônica havia conhecido até então.
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Mônica
FantasyMônica era uma moça ingênua, sensível e muito inteligente, com todos os anseios e sonhos de uma jovem de sua idade na década de 70, quando ela se envolveu, quase acidentalmente, com assuntos considerados ameaçadores no período do regime militar bras...