O Etéreo e a Morte

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Mônica, enfim, saiu do hotel e, ao nível da rua, do chão, da terra, onde os seres da antiga escuridão viviam, ela aspirou profundamente o ar da noite, seu elemento; ali ela era poder e força, beleza e terror, paixão e fúria, e nenhuma dor humana deveria poder alcançá-la. A rainha imortal, detentora de presas assassinas, senhora do etéreo e da morte, do prazer e da dor, filha e representante do negro esquecimento. A noite era sua coroa!

O carro, com a logomarca da mais cara companhia de táxis executivos da região, não demorou a chegar, já que era dirigido por outro agente disfarçado, que deveria apoiar Deveraux e lhe servir de proteção no caminho até Figueiras. Ela entrou sem dizer palavra, e permaneceu quieta enquanto o veículo rodava pela cidade, pois estava olhando fascinada para as ruas passando lá fora. Era melhor assim, paixões, amores, coisas de mocinhas ingênuas que eram engolidas e arrastadas, mastigadas e destruídas pela humanidade inclemente, essas tolices deveriam mesmo ficar para trás. Mônica pertencia ao submundo, e precisava aceitar que era tolice a dor cruel que assolava seu coração quando algo a remetia a vida humana que lhe havia sido negada. Ela se empenhava honestamente em apreciar seu lugar na ordem sobrenatural das coisas... A noite nas grandes cidades humanas, ah, a noite. Mendigos, prostitutas, policiais desumanizados, viciados, traficantes, depravados, parasitas de todo tipo, corrupção e escória, que lindo, que lindo! Sorriu, seus caninos se insinuando levemente, parecendo um pouquinho maiores e mais agudos, os olhos baixando por um momento, a cabeça balançando de um lado ao outro, enquanto uma risadinha contida lhe escapava por entre os dentes. Era como naqueles desenhos animados antigos, clássicos, que ela assistia nas TVs valvuladas de sua infância, em que os personagens, famintos, se olhavam e viam uns aos outros transformados em comidas, coxas de frango ou belos rosbifes, com perninhas andando de um lado para o outro, tão apetitosos. As almas perdidas, das quais ninguém daria falta, passeavam na noite, feito aquelas comidinhas animadas, prontas para serem caçadas. Desejosas até, de serem abatidas, destroçadas e devoradas! Mas, por um minúsculo instante, os dentes de Deveraux trincaram, aquela maldita dor aguda na alma voltando de repente... Ou melhor, o que lhe doía era o buraco, o vazio, que a alma da moça deixou quando foi arrancada. Odiava e amava profundamente a noite, as trevas, por causa disto, pela essência gentil, frágil e humana que lhe foi usurpada, deixando-a ambígua. Respirou fundo, recompôs sua máscara, e voltou a sorrir ali de dentro do táxi, cujas janelas escurecidas por fora, camuflavam Mônica. Atenta feito um tigre com fome, invisível por trás de exuberante folhagem, observando, ainda incógnito, sua caça vicejando por todo canto, em cada sombra, em cada rosto sem esperanças. Carne quente e saborosa escondendo, por sua vez, sofridos e corrompidos corações pulsantes e igualmente deliciosos.

Até ali dentro, naquele carro, havia uma vítima em potencial. Mônica já havia percebido o motorista olhando furtivamente para ela pelo espelho retrovisor, o velho e tarado agente Rubens, perscrutando o corpo da sua passageira, seu decote; ela podia sentir que o federal, que devia ter quase a mesma idade que ela, mas que, ao contrário de Mônica, aparentava tal idade, queria subjugá-la, usá-la, como o pior dos homens costuma querer usar as mulheres. Não era a primeira vez que Rubens a comia com os olhos, discretamente, e Mônica o deixava olhar, só olhar, divertindo-se com o exaspero dele ao ver e ansiar pelo que jamais poderia possuir. Às vezes ela achava isso engraçado. Mas hoje não queria brincar daquele joguinho, e, sem aviso, rosnou para ele. Rubens, cujo olhar no retrovisor se transfigurou, passou a focar toda a sua atenção nas ruas à frente do táxi. Suas mãos se agitaram, um tanto trêmulas, no volante. A mulher ali atrás não tinha mudado de forma, quando lhe mostrou os dentes e o olhar cruel, mas, novamente sorrindo, Mônica pressentiu que o coraçãozinho vulgar de Rubens havia entendido, de um modo impossível de ser negado, que a agente poderia arrancá-lo do peito em que batia, e poderia fazer isso fácil, sem remorso algum. Muito pelo contrário, com deleite.

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