III. Misha

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III. Misha

Nas duas primeiras semanas mal vi o nosso hóspede ex-condenado. As aulas estavam tomando todo o meu tempo, provas e cursos extracurriculares. Tinha aulas regulares de manhã, grupo de estudo na parte da tarde e cursos, corria por uma hora após isso e estudava mais sozinha à noite. As minhas duas semanas após a chegada do Leonard foram as mais corridas possíveis, e eu apenas lembrava dele quando ocasionalmente o via quando chegava da escola ou saia para correr.

Ele não fazia as refeições com a gente, não socializava com Carl ou Alice, e eu conseguia ver que ambos estavam felizes por isso. Os meus dedos coçaram de vontade várias vezes para ligar para Amabel, a minha avó, e questioná-la sobre o filho desgarrado e marginal. Mas sabia muito bem que seria apenas colocar mais fogo nessa fogueira que eu já via estar grande demais.

Alice gritou o meu nome do andar debaixo e desci correndo, um livro na mão, um lápis na outra, quase escorregando na escada com aquele tapete creme horrível. Parei no meio da escada quando vi que Camille, uma das minhas melhores amigas, estava ali, o rosto coberto de lágrimas, os braços agarrando ao próprio corpo.

— O que houve? — Alice afastou-se me olhando com aquele olhar de mãe que dizia que era para que eu chamasse se precisasse de algo.

Desci o resto da escada, chegando perto de Camille, que agora chorava abertamente. Aquilo me preocupou. Camille não chorava sem um bom motivo, era aquele tipo de pessoa que apenas sorria de tudo, nunca vendo o lado negativo das coisas. Eu não conseguia ser assim, apesar de que irritava-me imensamente que ela fosse assim o tempo todo.

— Cam, o que houve? — Ela continuou chorando, seguindo sozinha para o andar de cima, os passos pesados, os longos cabelos loiros e cheios de cachos caindo pelos ombros.

Eu a segui, em silêncio, querendo saber o que acontecera, mas sabia que apenas conseguiria arrancar qualquer coisa que fosse quando estivéssemos em meu quarto.

Entramos e ela se sentou no seu canto preferido, uma almofada que fica na janela dos fundos, encostando-se nessa. Sentei em minha cama, largando o meu livro e o lápis em cima da mesa. A vi prender os cabelos e puxar os joelhos para cima, esfregando o queixo nos joelhos. Percebi que não chorava tanto mais, mas ainda deixava algumas lágrimas caírem de seus olhos verdes.

— Cam, o que aconteceu? — Ela me olhou com aqueles olhos tristes e chorões.

Queria entender o que poderia ter acontecido entre hoje de manhã e agora à noite. Ela estava bem no colégio, no grupo de Física Avançada também, então era algo em casa. E eu sabia que os pais não estavam se dando bem desde o começo do ano.

— Eles vieram me contar que vão se separar, Mi. Eles disseram que é o melhor e que eu deveria começar a pensar com quem eu quero morar. — Mais lágrimas caíram do seu rosto já avermelhado de tanto chorar. Levantei-me e fui até ela, sentando-me ao seu lado. Segurei as suas mãos e a fiz me olhar.

— Cam, a gente já sabia que isso poderia acontecer.

— Eu sei, mas é... é revoltante.

Assenti e soltei uma das suas mãos, acariciando a sua cabeça. Eu sou um lixo para confortar pessoas, mas eu a conheço desde que me mudei para cá com Carl e Alice. Temos mais de dez anos de amizade. Não poderia simplesmente observar a minha melhor amiga chorando e não fazer nada.

— Cam, você tem que pensar que eles estão tomando essa decisão baseados no que aconteceu entre eles, e o que é melhor para eles e pra você. — Eu disse isso enquanto a via limpar o rosto com as mãos. Sabia que ela estava triste, mas conseguia ver que também estava fazendo o máximo para entender.

Olhos Negros - DegustaçãoOnde histórias criam vida. Descubra agora