O som do electro se dissipava por suas entranhas. O quarto escuro, iluminado apenas pelas inúmeras holotelas, cheirava a um pútrido e inexplicável odor de qualquer coisa que com certeza não lembrava a algo humano.
Há três dias ligada à rede, Mariana sequer pensava. O fluxo do que estava fazendo seguia por si só, não tendo nada que ela pudesse fazer para mudar seus caminhos. Tudo estava determinado, tudo estava determinado antes mesmo de preparar os decks para o trabalho.Tudo estava determinado antes mesmo do email aparecer em sua caixa de entrada, com um nome fake e um endereço de criptografia duvidosa.
Aquele era, sem dúvida, seu fim.
Ela iria morrer.
Onde já tinha visto aquela história mesmo? Porque era muito clichê para não ter acontecido na ficção. Enquanto sentia o firewall agressivo que tentara destruir corroer o seu cérebro, Marian atentava se lembrar de todos os clássicos da ficção-científica que perdera o tempo de ver.
Aquilo, o que estava acontecendo com ela, era Matrix.
Ou Neuromancer, o que dava praticamente na mesma.
O que faltava para que sua história completasse a volta nesse ciclo interminável de clichês cyberpunk e encontrasse seu ápice?
A polícia? Agentes vestidos de preto que desejam sua morte porque você é uma ameaça ao meio de sobrevivência de máquina sesquisitas que dominaram — finalmente, já não era sem tempo — a Terra?
Alguma Inteligência Artificial de procedência duvidosa ac ontratando e oferecendo um pâncreas — e alguns outros órgãos —e alguns milhares de créditos em troca de um serviço sobre o qual ela nada poderia saber, acompanhada de uma assassina super sensual sobre a qual ela também nada poderia saber e com quem acabaria por ter algum tipo de envolvimento sexual só porque estavam em uma sociedade distópica que dedicava sua vida a fritar seus cérebros com drogas e tecnologia desenfreada? Uma IA orgânica (não pergunte) que após refletir sobre sua condição humana resolve virar um prédio?
O que mais poderia esperar Mariana no fim de todo aquele mar de sensações horríveis onde sua viagem mal-sucedida a obrigou anadar?
O escuro... O escuro parecia tão acolhedor...
***
Mariana acordou de seu pesadelo. Não, aquela lembrança, de novo,não.
Aquela experiência fora uma das coisas mais bizarras que já aconteceram em sua relativamente curta e mal-aproveitada vida como uma explorer.
(Explorer, ou "exploradora" era só um termo bonitinho para hackers de aluguel. Nem a polícia caía mais nessa, mas,de certa forma, era o que separavam os profissionais — como Mariana— dos amadores)
Depois de apagar — e pensar mais de uma vez que, sim, ela iria morrer — Mariana acordou com seu roomate a cutucando com uma barra de ferro. A vida não era fácil no canto onde ela vivia. O distrito de Nova Maranhão era uma das regiões mais pútridas de toda a São Paulo estendida. Em um ambiente onde gangues de motocicletas brigavam em plena luz do dia pelo direito à posse de bairros inteiros, o abandono e descaso do Estado era evidente. Nã oque os moradores quisessem que as forças governamentais lembrassem de sua existência. As ruas eram escuras e cheiravam a um misto de substâncias malcheirosas cujos ingredientes não eram facilmente identificáveis. Os letreiros de LED, que imitavam os de neon,se espalhavam pelas ruelas e grandes avenidas, dividindo sua ilegalidade com os outdoors mal-colocados em espaços inadequados. Farmácias, padarias, lojas de eletrônicos,supermercados eram tomados por bares e boates e cantos não muito amigáveis, com prédios baixos, envoltos pelos arranha-céus dos bairros exteriores.
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A morte de Lilith
Science FictionMariana só queria continuar com sua vida de hacking, noites sem dormir e uso de drogas de procedência duvidosa. Entretanto, um estranho trabalho poderá mudar o curso de sua vida para sempre.