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SINGER

Toccata and fugue in D minor*. Essa era a música que soava no alarme do meu celular, que tocava religiosamente todos os dias às 6:15. Música de pesadelos para me acordar de meus sonhos. Irônico e eficaz.

Ainda de olhos fechados, tateei a cabeceira até sentir a superfície lisa e gelada do visor do telefone. Após pressionar às cegas, apertei o botão para silenciá-lo.

Na mesma hora, ouço o som abafado dos saltos de minha mãe pelo corredor revestido de madeira escura até chegarem ao meu quarto.

-Cinco minutos, Lyra. -ela avisa, num misto de doçura e autoritarismo.

Solto um resmungo e levanto de uma vez, porque sei que se dormir de novo, vou me atrasar, e vou até o banheiro. Pela vidraça da janela, o sol matinal de Manhattan anuncia o início de mais um dia que eu teria que encarar. Eu morava e estudava em Upper West Side desde sempre, mas nem mesmo a agitação de Nova York era suficiente para me animar de manhã. Assim como todo jovem comum, eu detesto acordar cedo. É algo natural. Biológico. Adolescentes tendem a dormir tarde e acordar tarde, mas minha rotina matinal não se adequa a tal fato. É nítido, a julgar pelas manchas levemente arroxeadas abaixo dos meus olhos e os bocejos frequentes.

Faço minha higiene o mais rápido que meu sono permite, o que não é grade coisa, a julgar pelos meus atrasos constantes. Meu cabelo, ondulado e castanho escuro, estava emaranhado e levou alguns minutos até que a escova ganhasse a batalha travada contra ele. Os meus olhos, da mesma cor dos cabelos, exibiam sonolência que eu disfarçava com corretivo e delineador preto aplicado com uma simetria perfeita que tinha levado anos para se aperfeiçoar. Minha pele, mais alva do que eu gostaria, estava marcada pelo travesseiro nas bochechas, o que eu resolvi após lavar o rosto umas duas vezes com sabonetes especiais de pele mista.

Quando finalmente abandono minha aparência deplorável, abro o closet. Olho durante minutos procurando algo para vestir, e pego por fim uma saia e uma camisa qualquer, no melhor estilo colegial. A maioria das roupas no meu armário são nesse estilo. Pois é, nada de góticas por aqui. Não que eu não goste do preto básico e das calças rasgadas, mas as saias e meias 5/8 com cores pastéis ganham no meu conceito de moda.

Subo minhas meias até acima dos joelhos, amarro os cadarços do meu tênis All Star vermelho escuro - que já é velho o bastante para que a estrela no tornozelo estivesse desbotada - e passo a mão pela pulseira que habita meu braço esquerdo, como faço ritualmente todos os dias. Ela possui apenas um pingente: um pequeno piano de cauda. Olho para o canto esquerdo do quarto, onde um piano vertical verdadeiro descansa, o instrumento que definia quase tudo sobre mim.

Meu nome é Lyra Singer. Tenho dezessete anos, oito meses e alguns dias. Na escola, ainda encaro o ensino médio: último ano, prestes a me formar. E, por último mas não menos importante, eu sou um projeto de pianista.

Eu sei, eu sei. É comum que adolescentes saibam tocar instrumentos. Mas não é isso que quero dizer. Pessoas da minha idade costumam tocar músicas de ídolos teen ou sucessos do passado como Beatles e Queens. Eu, aos nove anos, já era viciada em Clair de Lune e Fur Elise.

Minha família não poderia ter um sobrenome mais adequado: meu pai costumava ter uma banda quando mais novo. Assim ele conheceu minha mãe: em audições para vocalista. Ela foi escolhida e vinte e cinco anos depois, estamos aqui. Aparentemente, o interesse por música começou com meu avô, já que o nome Singer lhe dava a deixa perfeita. Não tenho certeza, mas acho que ele não conseguiu muito mais do que simples músicas em uma gaitinha prateada ou algo do gênero. Meu pai foi mais longe, formou uma banda com seus amigos rebeldes, onde ele era o baterista, e conheceu o futuro amor da vida dele.

No Ritmo da Batida [DEGUSTAÇÃO]Onde histórias criam vida. Descubra agora