A Lembrança

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O ultimo dia de algo, em si, não é ruim. A pior parte de ser o ultimo é que você nunca sabe que é sua ultima chance de aproveitá-lo.

Acordo com o ar preguiçoso como qualquer outro dia, principalmente por ser feriado. A chuva cai lá fora, e da minha cama ouço suas gotas tocarem o chão, a lataria dos carros, os telhados e as pessoas. Apesar da leveza de cada partícula de água, elas juntas transformam o silencio da manhã em sinfonia.

Levanto-me após procrastinar o maximo que achei possível. Olho para o relógio e já são duas da tarde. Eu diria que dormi mais do que deveria, se não fosse o fato de ter ido dormir as seis da manhã.

Enquanto lavo o rosto lembro-me de alguns momentos da noite anterior. A festa, feita com o pretexto de despedida da faculdade, ocorreu em um clube diferente dos que eu já havia frequentado; era um espaço aberto, que nos fazia relembrar a beleza de deitar na grama no meio da noite apenas para apreciar o céu estralado. Mesmo que estivéssemos vendo estrelas a mais devido ao nível do álcool no sangue. Na verdade, acredito que todas as estrelas que vimos foi algum tipo de imaginação da nossa parte. Pois, era uma noite nublada, e se algum astro mostrou-se, foi porque fugiu das suas vestes de nuvem.

Foi uma bela festa. Intercalada entre risadas infindas com amigos e danças com beijos molhados pela chuva. Sendo esses últimos apenas com Savana, claro.

Ah Savana!

Após ingerir rapidamente duas torradas com um pouco de achocolatado, me encaminho para o banho. Preciso me arrumar. Havíamos marcado de sair hoje, já que nessa data faremos quatro meses juntos.

Ainda me lembro do dia em que a conheci. Era a nossa formatura da faculdade. Eu em Economia, ela em artes. Ela com seus longos fios pintados de azuis, e eu encantado com sua áurea.

A campainha toca, me retirando dos meus pensamentos e da minha escolha de que camisa usar.

Vou caminhando em passos pesados até a porta, irritado com o fato de alguém inconveniente chegar em má hora.

Olho através do olho mágico e me surpreendo. Abro a porta e balbucio.

- Mas, o que?

- Mudança de planos. Não quero mais sair. – Diz Savanah entrando no meu apartamento. – Hoje faremos um programa diferente. – Ela vai até a mesa e despeja todo conteúdo de sua mochila. O que inclui algumas roupas e vários pacotes de doces. – Vamos ficar em casa, curtir a chuva e bons filmes.

- Savanah, eu já estava me aprontando para ir te encontrar.

- Pois desapronte! Se já estou aqui, não tem mais porque sair para encontrar ninguém. – Ela já havia se jogado no sofá e trocava apressadamente os canais da televisão.

Fui até o quarto então colocar apenas um short e uma camisa batida.

Joguei-me no sofá ao seu lado e perguntei o que assistiríamos.

- Clássicos, Lucas. Clássicos!

Lembrei-me das vezes que ela me havia feito assistir intermináveis filmes sem cor e som. Apesar de todo tédio que sentia, o olhar dela compenetrado e admirado em cada cena fazia todo obra cinematográfica valer a pena.

Mas hoje ela remexia em minha velha caixa de coleções. Após algum tempo, estávamos assistindo a chaves. Rindo de piadas antigas que não envelhecem.

Até que nos encontramos em uma pequena divergência de opiniões. Eu dizia que Chaves era melhor do que Chapolim por usar sempre os mesmo personagens. Nós deixando assim familiarizados. E ela insistia em dizer que Chapolim explorava mais a fundo seus episódios graças aos seus diversos personagens em apoio aos costumeiros, o tornando assim uma obra mais completa.

Nossa conversa acabou por aflorar outros aspectos em que discordávamos. Até ela dizer que, em sua opinião, quando os autores que escrevem sobre guerras usam personagens infantis, é para usar sua visão ingênua como pretexto para não ter que se aprofundar no plano técnico do acontecimento. "Afinal, com menos de dezesseis ainda não enxergamos o mundo."

Eu discordei, correndo para a cabeceira da minha cama, agarrando o diário de Anne Frank e entregando-a. Com a condição de que ela só me devolvesse depois que terminasse der ler e aceitasse que uma criança pode sim, ter uma visão madura e realista da guerra. E que poderia sozinha obter uma concepção exata tanto do que a guerra causa ao mundo, quando a ela mesma.

Ela aceitou, guardou em sua mochila e disse que me diria sua opinião assim que terminasse a leitura. Mas algo em seus olhos dizia-me que isso não iria acontecer.

Pedi para ver novamente o seu caderno de viajens. Era um pequeno livro laranja onde ela havia colado cartões postais em todas as paginas. As imagens eram de lugares que ela gostaria de conhecer. E, quando os conhecia, trocava as fotos compradas em bancas de jornais pelas que ela própria tirava do local. Acrescentando abaixo da foto uma legenda, que para ela simbolizasse como foi a viagem.

Como foi feito em paris. Onde ela acrescentou a seguinte frase: "la vie est belle vue du géant de fer.

Desde que ela me contara da existência de tal caderno, prometi a mim mesmo, em secreto silencio, que a levaria a todos os lugares para que o completasse.

E entre suas peculiaridades, Savanah fazia uma nova tatuagem para cada uma de suas "conquistas". Poderiam ser elas formar-se na faculdade ou conseguir prender a respiração por mais tempo do que imaginara que conseguiria. Seja lá o que fosse, se ela considera-se uma conquista, era digno de um novo desenho em seu corpo.

Após mais algumas horas regadas a filmes, pizzas e doces, já era noite. Savanah levantou-se e foi tomar seu banho para dormir.

Saiu do banheiro com uma velha camisa minha do The Smiths, e com seus cabelos azuis ainda úmidos.

Deitou-se em minha cama, ao lado de onde eu já estava. Inclinei-me para beija-la, e ela recuou, dizendo que estava cansada e adormeceu enquanto reclamava da bagunça do meu quarto.

Permaneci admirando-a enquanto dormia. Contemplando cada traço de seu rosto e de seu estreito corpo recostado no meu peito. Cai no sono sentindo-me leve e completo.

Ao acordar, ainda sem abrir os olhos, passei as mãos pela cama a procura do calor de Savanah. Mas apenas encontrei minha camisa dobrada ao meu lado. Não era de surpreender que Savanah tentasse colocar um pouco de ordem no meu quarto, do qual ela sempre reclamava.

Levantei-me e fui a passos lentos até o banheiro, na intenção de flagra-la maquiando-se, como sempre fazia.

Ao abrir a porta do banheiro me surpreendi com o vazio que encontrei. Nada de Savanah e nem de suas coisas que ficavam alocadas em cima de meus armários. Seu shampoo, seu pente, sua escova de dentes e suas milhares de pequenas coisas haviam desaparecido.

Meu ultimo fio de esperança quis acreditar que ela estava apenas arrumando o lugar.

Corri para sala, e em cima da mesa em vez de sua mochila, estava apenas um DVD do Chapolim junto com mais alguns doces.

Nada fazia sentido. Por que ela não estava ao meu lado quando acordei? Segurei o DVD e percebi a presença de um pequeno papel preso em seu verso.

A folha arrancada de seu tão amado caderno laranja, traziam as piores palavras que já li, escritas com tinta roxa e com a caligrafia de Savanah.

"Eu ia te contar, mas não tive coragem. Achei que assim seria mais fácil para nós dois. Você sabia, sempre soube, que uma hora eu acabaria partindo.

Tenho sonhos, Lucas. Tenho ambições. Eu ainda tenho muito que voar antes de ter um ninho.

Mas quero que saiba que eu nunca vou te esquecer, nem nada do que dissemos um ao outro. Você é e sempre será muito importante para mim.

Com Amor,

Savanah.

ps: Prometo ler seu livro."

Sentei-me no sofá com suas palavras zumbindo em meus ouvidos. Sua voz havia ficado guardada em minha cabeça assim como seu cheiro sempre se prendia em minha roupa.

Com a cabeça reclinada para trás, as perguntas fervilhavam em minha mente.

Ela havia me deixado sem ter dó.

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