A decisão

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"Vai atrás da menina que você realmente gosta." As palavras de Beatriz me assombraram durante toda a noite. A imagem da doce menina indo embora com os olhos molhados pela decepção não saia da minha mente.

Eu sabia que ela tinha razão. Eu deveria fazer algo. E eu faria. E agora faria da maneira certa.

Levantei-me da cama e peguei o bilhete de Savanah. Peguei as chaves, a carteira e sai de casa.

A chuva castigava lá fora. Não era a garoa que eu tanto amava admirar. Era um céu raivoso, que de tempos em tempos se acendia para mostrar que ainda não havia se acalmado.

Não era o tipo de chuva que purifica. Era a chuva que pesa e encharca. Como uma decisão errada.

Ignorei os protestos do céu e corri até o ponto de ônibus.

Me abriguei na pequena marquise sozinho, torcendo para que mais ninguém chegasse e eu tivesse que me esgueirar pelas beiras, sendo atingido por mais alguns pingos frios e pesados. 

É engraçado como a ansiedade desacelera o mundo. Mais você anseia, menos acontece.

E, naquele dia, eu ansiava por tanto. Desejava que logo o ônibus chegasse, que eu soubesse exatamente o que iria fazer e o que falar.

Depois de algum tempo remoendo erros e desilusões o ônibus então veio. Não me lembro ao certo o tempo que demorou. Mas tenho certeza que não foi a eternidade que me pareceu.

Dentro do ônibus, eu ouvia a lataria apanhar da chuva. Cada pingo uma nota, um som, que sozinho nada séria. Mas as gotas, todas unidas e em queda, cada uma ao seu tempo, era sinfonia. Era quase um grito de guerra. O mais frágil dos seres, leve e molhado, mostrando que ainda poderia ser devastação.

Eu me molhava com a chuva, mesmo em só vê-la. Me encharcada e agoniazava no afogamento da percepção.

Erros não nos fazem mal. Não nos culpam, não pesam. A menos que você os veja com olhos abertos. A menos que seu erro se torne sólido e palpável. E o meu era. Meu erro acabava de se tornar assim, ao perceber como errei até para pensar.

Nos criamos vidas, historias e dores. Desde crianças, quando temos amigos imaginários, aventuras no jardim e dor de dente só para não ir a escola. Nós criamos e acreditamos neles. Acreditamos na nossa mentira e isso torna-se nosso erro.

Eu fui da Savanah enquanto ela era minha. E depois eu apenas fui de uma sela de lembranças que eu mesmo criei.

E nesse momento eu soube, que eu agora era meu, mas não queria mais ser.

O meu ponto final chegou, era hora de descer e tornar aquele um início. O caminho é escuro e deserto até a casa verde onde mora a moça dos cabelos negros. São apenas duas quadras, mas elas pareceram um longo caminho. Daqueles grandes o suficiente para tomar a decisão da sua vida.

A sensação ao chegar a porta da moça era de enjoo. Daqueles enjoos que sentimos quando precisamos de perdão. Aquele enjoo que pesa o estomago pela culpa. Quase vomitei. Mas antes, precisava me engolir para despejar algumas palavras.

Após meus chamados por Beatriz em frente a sua casa ela surgiu a porta, aberta a me ouvir, não mais molhada, mas eu a via encharcada por dentro. Isso foi o que mais pesou. Ela havia aceitado. Estava ali, queria me ouvir, mas não tinha esperança de que eu pudesse convence-la.

- Me desculpe - foi a primeira frase desengonçada que consegui dizer, sendo respondido por um desinteressado aceno. - Eu preciso que me ouça. Que me ouça mais do que apenas com os ouvidos e que me ouça mais do que já ouviu. Pois preciso que veja além dos atos errados e palavras malditas.

Não sei se por confusão ou interesse, seu segundo acesso me deu mas convicção que ainda não  a tinha perdido.

- Não tenho tempo de lhe explicar todos os motivos que me trouxeram até aqui. Não quero mais perder tempo. Você hoje me disse para ir atrás da menina que eu realmente gosto, e eu segui seu conselho, fui para casa. Fui procurar o ultimo vestígio da Savanah. Mas isso me fez ir ao caminho errado. Foi um erro. Pois eu havia esquecido de algo.

Entreguei a ela o bilhete. A despedida da que se foi. E ela o leu enquanto seus olhos naufragavam em lagrimas que brotavam a cada linha absorvida.

- Por que me entregou isso? - Disse ela, agora claramente mostrando que ainda se importava. Criando em mim novamente algo que eu queria nela: Esperança.

Levei meus dedos leves ao dela e virei a carta que ainda estava em suas mãos.

- "Se mesmo assim me quiser, encontre-me no aeroporto as 11hrs." - Ela leu as ultimas letras de Savanah.

- A grande verdade é: se eu realmente gostasse dela como acreditei que gostava, eu ainda a teria. Mas meu orgulho falou mais alto que qualquer sentimento que existisse. Ela me deixou uma trilha até ela, e eu decide não seguir. Mas, com você, apesar do meu erro, meu orgulho não chegou aos pés do que sinto. Por isso estou aqui, sem ser chamado, sem ter bilhete. Eu vim para que eu pudesse ser perdoado. Eu fiz o que disse, Beatriz. Vim atrás da menina que realmente gosto. 

O bilhete perdeu-se nesse dia na chuva, nas poças e na memoria. E nós, nos encontramos um no outro.



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