Apocalipse Now

45 7 6
                                    

Nayara
03 de janeiro de 2017, d. C.

Estava escuro e eu sentia frio. Frio e, por algum motivo, medo. Abrir os olhos foi tão cansativo que logo após ver as estrelas, que me pareceram muito próximas, tive de fechá-los. E isso é tudo o que recordo antes de ser acordada por Sith.

Sith é o sobrenome do meu vizinho Erico, mas todo mundo o chama assim. Ele não é um vizinho qualquer, ele também é o meu melhor amigo. Nossos pais morreram em um naufrágio bem perto daqui, na costa de Santa Catarina. Fomos encontrados por pescadores em cestos dentro de um barco salva-vidas à deriva, e sabemos que nossa origem é sueca apenas por uma inscrição na madeira clara: "För Sverige i tiden" .

Há quase 18 anos, quando fomos levados a uma clínica médica, após nosso resgate, uma jovem médica se encarregou dos nossos cuidados. A ela os pescadores contaram que estavam navegando atraídos por uma fumaça densa que avistaram atrás da Ilha do Coral, em Garopaba.

No entanto, quando imaginaram estar próximos, uma neblina intensa dispersou qualquer visão por cerca de dez minutos, para, em seguida – repito, segundo esses pescadores supersticiosos como quase todos os naturais dessa região – enfim, disseram que viram uma bela criatura metade-mulher, metade-peixe colocando as crianças no barco e que, num piscar de olhos, ela desapareceu.

É claro que quando nos contaram isso pensamos ser irmãos, mas somos muito diferentes. Sith tem estreitos olhos cinzentos e cabelos negros e lisos, que ele insiste em não cortar. Visto de longe poderiam achar que é uma menina, sempre digo isso, mas ele não se importa. Fica tirando de "sou descendente de vickings". Já eu tenho cabelos claros, uma cor entre o louro e o caramelo, lisos e fartos, e olhos verdes de mangá, sim, desses enormes.

O que temos em comum é uma pele alvíssima que não queima – poxa! Moro no litoral, cheio sol e surfistas quentes, mas pareço um papel. Pelo menos no inverno a população daqui não pode se dizer muito diferente, já que a descendência europeia dos catarinenses é inegável.

A médica é hoje minha mãe. Ela se chama Mariana Alfares, é pediatra voluntária na nossa comunidade e pesquisadora da Universidade Federal de Florianópolis.

Como ninguém apareceu para me reclamar a guarda, nem a do Sith, nós ficamos sob seus cuidados, e o seu primo Devan Sith, enfermeiro geral da clínica, se tornou o pai do meu melhor amigo. Achei interessante eles nos registrarem com um mês de diferença para nossos aniversários, isso evita um pouco do constrangimento, já que ainda somos muito grudados. Sempre tem um enxeridos para falar que somos irmãos e namoramos. Incesto! É um absurdo atrás do outro.

_ Nay! Acorde, por favor, preciso da sua ajuda! Fala comigo Nay, eu sei que você está viva, preciso saber se você está bem!

_ Céus! Que droga Sith, me deixa em paz, estou cansada, meus olhos doem, só mais 5 minutos...

_ Ah tá... seria ótimo te deixar dormir mas você nem está na sua cama.
Essa foi uma informação relevante, as imagens das estrelas voltaram quando abri os olhos.

Estávamos ao relento, sobre uma espécie de rede de pesca cheia de folhas de árvores, por isso estava macio, além disso estávamos em algum terreno muito alto, uma montanha aparentemente, mas não era possível enxergar muito além com a iluminação de apenas uma lanterna que estava ao meu lado direito.

_ Onde estamos Sith? O Que aconteceu?

_ É complicado Nay, eu já vou te contar tudo. Mas primeiro preciso que você beba isso – ele me entregou um cantil – é água, consegui na cachoeira a caminho daqui, estamos no Taboleiro. Beba, mas primeiro observe os cortes nas suas pernas, e nem pense em me acusar porque eu fiz o melhor que pude pra não deixar você morrer, me agradeça depois.

_ Sith! Que maluquice é essa de morrer? Por que estamos aqui e uma hora dessas? Eu não consigo me lembrar de nada! O que é isso nas minhas pernas??? – havia pelo menos três lacerações profundas e ensanguentadas, duas na perna direita e uma na perna esquerda, com cerca de 10 a 15 centímetros. Toquei em um dos inúmeros arranhões e hematomas em início de formação, e a dor foi lancinante. _ Sith, eu vou te matar...

Mas não consegui proferir mais nenhuma ameaça porque ele segurou meus pulsos e tapou meu nariz. Como uma mãe a obrigar o filho a tomar o remédio, me enfiou a água goela abaixo.

Ia protestar com violência, mas tomar a água me despertou tal qual um expresso sem açúcar. Imediatamente senti meus músculos relaxarem. A dor nas pernas começava a ceder, a cabeça parou de latejar e me senti disposta. E incrivelmente calma também. Percebendo isso, Sith soltou os meus braços e aguardou, como se esperasse por alguma revelação, alguma sabedoria mágica que me tivesse feito compreender tudo o que tinha acontecido, aquela cara de "e então?".

_ Ok Sith, eu bebi a água, estou melhor, obrigada. Mas ainda não entendi nada. Será que pode me dizer o que está acontecendo? Por que estamos aqui no meio do nada e machucados? Tipo... agora?

Um Conto de FadasDonde viven las historias. Descúbrelo ahora