Júlia

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Algumas pessoas passam pela vida em um cor-de-rosa infinito, cheio de boas lembranças e histórias engraçadas que serão sucesso nas festas de fim de ano.
Eu não era uma dessas pessoas.
Anda, anda, anda, caramba!, quiquei no banco do táxi, observando o aglomerado de carros que atravancava a avenida. Havia sirenes mais à frente, e uma multidão de curiosos impedia que o trânsito fluísse. Eu não podia esperar. Fazia mais de uma hora que Dênis tinha me ligado para avisar que tia Berenice havia sido internada. O tom de voz de meu amigo, que costuma falar pelos cotovelos, estava muito sério. Ele não deu nenhum detalhe, e isso me fez imaginar a gravidade da situação.
~Tudo bem, eu fico aqui mesmo~falei para o motorista. Dei uma olhada nos números do taxímetro e abri a bolsa para pegar o dinheiro.
~Tem certeza que não quer esperar? Talvez o trânsito melhore ali na frente.
~ Já estou bem perto.Consigo chegar mais rápido a pé do que de carro. Obrigada.~Entreguei as notas a ele e, sem esperar pelo troco, abri a porta para sair.
Atravessei a rua, me espremendo entre os veículos quase inertes.Olhei o relógio ao pisar na calçada. Uma hora e sete minutos desde que Denis ligara e eu saíra correndo da L&L Cosméticos. Nem tive tempo de avisar Amaya. Minha amiga e colega de empresa certamente ficaria preocupada quando eu não aparecesse no refeitório no horário do almoço, mas eu não pensei direito quando ouvi a voz profunda de Dênis dizendo que estava levando a tia Berê para o hospital e que eu deveria correr para lá. Só juntei minhas coisas e entrei no primeiro táxi que vi, implorando mentalmente que minha tia aguentasse mais essa.
Porque ela tinha que aguentar.
Tirei os óculos e esfreguei os olhos para enxugar as lágrimas que ameaçavam transbordar, engolindo o nó que me fechava a garganta antes de começar a correr. Cinco quarteirões depois, eu estava me dirigindo à recepção do hospital, com seus tons frios de madeira clara e suas paredes brancas. Após intermináveis dez minutos, fui levada por um dos enfermeiros ao andar onde minha tia estava internada. Enchi o cara de perguntas no caminho, mas ele não sabia muito. Ou fingiu não saber.
Avistei Dênis andando de um lado para o outro. Mesmo sendo tão alto, ele me pareceu menor que de costume.
~Dênis!~ chamei, me adiantando até ele.
~Júlia. Graças a Deus!~ Ele inspirou fundo e passou os braços ao redor dos meus ombros, me apertando tanto que acabei gemendo.
~Como que ela tá? O que aconteceu?~ Eu me afastei para ver seu rosto bonito. Os olhos cinzentos estavam vidrados, deixando a pele amendoada meio sem cor.
Aí não!
~Ela começou a sentir dores e não conseguia respirar direito. Ficou muito pálida. Enfiei ela no táxi e trouxe pra cá. Achei que era o certo a fazer.
~Ela não protestou?~Porque tia Berenice nunca ia para o hospital sem uma bela discussão.
Ele negou com a cabeça.
Ah, meu Deus!
~Como é que ela tá, Dênis?~ repeti, sentindo um tremor subir pelos tornozelos.
~Eu não sei, Júlia. Só avisaram que o dr. Victor vai falar com você daqui a pouco.
Sempre que o dr. Victor falava comigo, as notícias eram as piores possíveis. E nos últimos tempos nós tínhamos conversado um bocado de vezes.
O problema era no coração de tia Berenice. A insuficiência progredira com muita velocidade, e agora ela precisava de um transplante. E, diferentemente do que ocorre nas novelas e nos filmes, um coração novo não saltou na nossa frente assim que o diagnóstico foi dado. Nenhum órgão compatível apareceu nos últimos seis meses. Eu tentava manter a fé, a esperança de que qualquer momento um doador surgiria. Porém, conforme as semana iam passando sem nenhuma novidade - exceto o fato de a saúde de minha tia definhar a cada dia -, acreditar em um milagre se tornou impossível.
Dênis me levou para dentro do consultório onde o enfermeiro havia pedido para aguardarmos. Nem tive tempo de me acomodar na cadeira de aparência desconfortável antes de a porta se abrir e o homem de cabelo prateado entrar. A baixa estatura e o corpo mirrado não faziam justiça à sua competência.
~Como é que ela tá, doutor?~ Eu me aproximei do dr. Victor, as mãos unidas em súplica.
Ele me olhou com gravidade.
Merda.
~ Os remédios surtiram pouco efeito nas últimas semanas, Júlia.
~Não!
~Calma, florzinha.~ Dênis estava logo atrás de mim, as mãos grandes em meus ombros, me confortando. Ou me mantendo de pé. Eu não tinha certeza.
~Deve haver algo que o senhor possa fazer ~ sussurrei para o médico.
~ Estou tentando de tudo o que posso, tudo que ela suporta, mas, Júlia, a sua tia precisa de um transplante imediatamente. Ela não vai aguentar muito mais. Aliás, a Berenice está consciente agora e quer ver você. Está preocupada.
Quase dei risada. Ela estava passando mal e seus pensamentos era todos para mim. Bem típico de tia Berê. Sempre foi assim, desde muito antes de a minha guarda ter sido dada a ela, não é?
~Antes de ir vê-la...~dr. Victor acrescentou.~Procure não deixá-la agitada. E não permita que a Berenice a veja sofrer desse jeito. Pode piorar o quadro dela, e o tempo agora é o nosso pior inimigo.
~Posso acompanhar a Júlia, doutor?~ Dênis perguntou. ~ Acho que ela não vai conseguir entrar naquela sala sozinha. Está a ponto de cair.
~ Claro.

Mentira Perfeita Where stories live. Discover now