Um soluço ameaçou a me tirar dos eixos, e eu pedi licença para usar o banheiro.Mal consegui fechar a porta antes de perder o controle.
Tia Berê não podia estar indo embora. A mulher que me criara e educara não podia partir ainda. Precisávamos de mais tempo.
Tempo. Não existe nada mais preciso que isso.
E eu estava desperdiçado, me dei conta, perdendo o controle daquela maneira. Endireitei os ombros, marchei até o lavatório e molhei o rosto, tentando me refazer. Apoiado as mãos no mármore frio, obrigando minhas pernas a manterem sua função de me sustentar. No espelho, vi os olhos assustados da menina magricela de seis anos, que esperava o juiz decidir se a mandaria para uma família que também a rejeitaria ou se permitia que ela vivesse com tia Berenice.
Agarrei as bordas da pia e encarei meu reflexo. Eu não tinha mais seis anos. Meu cabelo castanho-claro ainda era muito liso, mas agora terminava no meio das costas, e meus olhos já não apreciam grandes demais para o meu rosto de vinte e cinco anos. Meu corpo mudara, ganhará curvas - modestas, admito-, e eu era uma cabeça mais alta que tia Berenice. Não que fosse grande coisa, já que ela tinha apenas um metro e cinquenta e três, contando o topete. Havia no espelho muito pouco que remetesse aquela menina assustada, exceto pelo medo em meus olhos. A mesma expressão daquela tarde, quando eu esperava pelo fim do mundo, que nunca veio. Mas ameaçava vir agora, como um tsunami, impossível de ser contido.
Para com isso! Ainda existe uma chance! Um coração vai aparecer a qualquer instante!, repeti sem parar, até obter o controle de minhas emoções de novo.
Endireitando os ombros, saí do banheiro e acompanhei o médico até a UTI. Dênis me amparou sempre que foi preciso. Uma coisa é fingir ter coragem. Outra, completamente diferente, é convencer suas pernas dessa coragem.
Depois de vestirmos as roupas que o dr. Victor nos indicou, entramos na sala gelada , que cheirava a pinho, éter e dor.
Na cama alta, plugada a muitos fios, tia Berê parecia pálida é minúscula, tão diferente da mulher forte e dona de si que sempre fora. Seu peito subia e descia mais rápido que o normal. Ela moveu a cabeça assim que ouviu a porta se abrir e sorriu por baixo da mascar de oxigênio.
~ Dênis. Juju, meu amorzinho.~ Ouvi sua voz cansada enquanto me aproximava.
~ Tia Berê...~ foi tudo que eu consegui dizer, engolindo em sego e tentando calar os gritos desesperados em minha cabeça. Dênis não parava de piscar.
~Seja sincera, Júlia... ~ ela começou, e eu temi o fim daquela frase.
Eu devia ter previsto. Quando é que a tia Berenice agiu como uma pessoa normal?
~... minha raiz tá aparecendo muito?
Pisquei e deixei escapar uma risada histérica. Acariciei seu cabelo curto e encaracolado pela permanente, onde uma fina linha branca se fazia visível rente ao couro cabeludo, contrastando com os fios tingidos de acaju.
~ A senhora está linda como sempre, tia.
~ Uma deusa glamurosa!~ Dênis ajudou.
Ela revirou os olhos.
~ Não sejam mentirosos. É impossível estar glamurosa com esses malditos respiradores. Mas está tudo bem. Meus dias de beleza terminaram. Aliás, meus dias terminaram. Ponto.
Meu rosto deve ter revelado o horror que senti ao ouvir a última parte, por que ela me olhou com ar aborrecido.
~ Não seja boba, Juju. Você sabe que não estou sendo literal. A minha vida acabou no momento em que aquele déspota ali na porta me proibiu de comer costelinha de porco. Como ele espera que eu sobreviva a isso?
~ É, não dá mesmo, dona Berê. ~ Dênis riu, encarando o dr. Victor, que também achou graça.
A relação de tia Berenice com as costelinhas ainda era um mistério para mim. Quando o médico sugeriu que ela substituísse a carne de porco por brócolis e aspargos, tive que segurá- la. Por pouco ela não pulou no pescoço do seu cardiologista para lhe arrancar os olhos, ou algo assim.
~ Bem ~ dr. Victor disse, abrindo a porta ~, se você está pretendendo falar mal do médico, é melhor ele ser educado a se retirar. Volto em meia hora.
~ Covarde!~ resmungou minha tia depois q ele saiu. ~ Não aguenta um pouco da verdade. Aposto que come costelinha todo dia.
~ O coração dele não está com problemas ~ eu me ouvi dizendo.
~ Não importa. E deve ter sido isso que fez meu coração se comportar mal hoje . Ela não sabe viver sem costelinha. ~ Ela soltou um suspiro desconfortável e cravou seus olhos castanhos, exatamente do mesmo tom dos meus, em mim.
~ Mas eu não posso reclamar de verdade, não é, Juju? Tive uma vida boa. Vivi cada aventura que pude. Você, meu amor, ainda nem começou.
~ Tia, não é o melhor momento para a senhora me dar uma bronca.
~ Não é uma bronca. Estou preocupada de verdade. Sabe, um dia eu vou ter que partir e você vai ficar sozinha. ~ Ela virou o rosto, olhando para o equipamento repleto de luzes acima de sua cabeça.
~Então esta conversa é desnecessária, já que a senhora não vai a lugar nenhum tão cedo. ~ Por favor! ~ Quer que eu ligue a TV ou pegue alguma coisa?
~ Não, meu docinho. ~ Ela balançou a cabeça uma vez, a agitação se avolumando em seu semblante. ~ E não mude de assunto. Sabe o que mais me entristece quando eu penso na morte? Não estar aqui para saber como será sua vida, quem cuidará de você.
~ Ora...Eu! ~ Dênis tocou a mão dela.
~ Eu sou adulta, tia. Posso cuidar de mim mesma. Mas a senhora não devia pensar nessas coisas, porque...
~ Eu só queria que você demonstrasse por alguém de carne e osso a mesma paixão que tem pelos seus programas de computador. ~ Ela esfregou o peito.
Ah, droga!
Eu me virei, pronta para disparar porta afora, quando Dênis interveio:
~ Mas isso mudou, dona Berê! Júlia, você não contou para a sua tia que está namorando?
•_____________•Espero que gostem do livro, agora que as coisas vão ficar boas! Comentem...
Beijinhos...

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Mentira Perfeita
RomanceJúlia não tem tempo para distrações.Ela é brilhante e sempre se esforça para ser a melhor naquilo que faz; por essa razão, sua vida pessoal acabou ficando de lado. Algo que sempre preocupou sua tia Berenice.Gravemente doente, a mulher teme que Júlia...