CAPÍTULO 16.

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Da diferença que deve haver entre a perfeição da vida dos contemplativos e dos que se contentam com oração mental, e como é possível algumas vezes Deus subir uma alma distraída à perfeita contemplação e a causa disto. É muito de ter em conta este capítulo e o que lhe segue. 

1. E não vos pareça muito tudo isto, pois vou entabulando o jogo, como dizem. Pedistes-me que vos dissesse os princípios da oração; e eu, filhas, ainda que Deus não me levou por este princípio, porque nem mesmo o devo ter destas virtudes, não sei outro. Pois crede que, quem não sabe colocar as peças no jogo do xadrez, mal saberá jogar; e, se não souber dar xeque, não saberá dar mate. Assim me havíeis de repreender pois falo em coisas de jogo, não havendo jogos nesta casa, nem os podendo haver. Por aqui vereis a madre que Deus vos deu, que até esta vaidade sabia; mas dizem que é licito algumas vezes. E quão lícita será para nós esta maneira de jogar, e quão depressa, se muito a usarmos, daremos xeque-mate a este Rei divino que não poderá escapar-nos das mãos, nem quererá!

 2. A dama é a que mais guerra Lhe pode fazer neste jogo e todas as outras peças ajudam. Não há dama que assim O force a render-se como a humildade. Esta trouxe-o do Céu no seio da Virgem; e também por ela O traremos preso por um fio de cabelo às nossa almas. E crede: quem maior a tiver, mais O possuirá, e quem menos, menos. Porque não posso entender como haja nem possa haver humildade sem amor nem amor sem humildade, nem é possível haver estas duas virtudes sem grande desapego de todas as coisas. 

3. Direis, minhas filhas, «para que vos falo em virtudes, quando tendes tantos livros que vo-las ensinam e não quereis senão contemplação». - Digo que, se pedísseis meditação ainda pudera falar-vos dela e aconselhar a todos que a tivessem, ainda mesmo que não tenham virtudes; porque é princípio para alcançar todas as virtudes e coisa em que o começá-la nos vai a vida, a todos nós os cristãos, e nenhum, por perdido que esteja, se Deus o desperta para tão grande bem, havia de a deixar, como já escrevi noutro lugar,s e outros muitos o têm feito, pois sabem o que escrevem; eu, por certo, não sei. Deus bem o sabe.

 4. Mas contemplação é outra coisa, filhas, que este é o engano que todos temos, pois, em chegando alguém a pensar uns momentos cada dia em seus pecados (a isso está obrigado, se é cristão mais que de nome), dizem que é muito contemplativo; e logo o querem com tão grandes virtudes, como está obrigado a tê-làs o muito contemplativo, e até ele assim o quer, mas está errado. Nos princípios não soube entabular o jogo; pensou que bastava conhecer as peças para dar mate, e é impossível, pois este Rei não se dá, senão a quem se dá de todo a Ele.

 5. Assim pois, filhas, se quereis que vos diga o caminho para chegar à contemplação, sofrei que me alongue um pouco em coisas que, embora à primeira vista não vos pareçam muito importantes, todavia, a meu parecer, não o deixam de ser. E, se não as quereis ouvir nem pôr por obra, ficai-vos com a vossa oração mental toda a vossa vida, que eu vos asseguro e a todas as pessoas que pretenderem este bem (e bem pode ser que me engane, porque julgo por mim que o procurei vinte anos), que não chegareis à verdadeira contemplação. 

6. Quero agora declarar - porque algumas de vós não o entendereis - o que é oração mental; e praza a Deus que tenhamos esta como se deve ter. Mas também tenho medo que se tenha com muito trabalho se não se procuram ter as virtudes, ainda que não são precisas em tão alto grau como para a contemplação. Digo que não virá o Rei da Glória à nossa alma - a estar unido com ela -, se não nos esforçarmos por ganhar as grandes virtudes. Quero-o declarar, porque, se me apanhardes nalguma coisa que não seja verdade, não acreditareis nada, e teríeis razão se fosse com advertência, mas não me dê Deus lugar a tal; será por não saber mais ou não o entender. Quero, pois, dizer que, algumas vezes, quererá Deus fazer tão grande favor a pessoas que estejam em mau estado para as tirar, por este meio, das mãos do demónio. 

7. Ó Senhor meu, quantas vezes Vos fazemos andar a braços com o demónio! Não bastou que Vos deixásseis tomar neles quando Vos levou ao pináculo, para nos ensínardes a vencê-lo? Mas, que seria, filhas, ver aquele Sol junto com as trevas e que temor não levaria aquele desventurado sem saber de quê, pois Deus não permitiu o entendesse! Bendita seja tanta piedade e misericórdia; que vergonha deveríamos ter os cristãos, de O fazer andar cada dia a braços com tão suja besta. Bem preciso foi, Senhor, que os tivésseis tão fortes; mas, como não Vos ficaram eles fracos de tantos tormentos que passastes na cruz? Oh! que tudo o que se sofre com amor torna a curar-se! E assim creio que, se ficásseis com vida, o mesmo amor que nos tínheis, tornaria a soldar Vossas chagas, e não seria mister outra medicina. O Deus meu! E quem tal a pusesse em todas as coisas que me dessem pena e trabalhos! Que de boa vontade as desejaria se tivesse por certo ser curada com tão salutar unguento! 

8. Voltando ao que dizia, há almas que Deus entende que, por este meio, as pode granjear para Si. Já que as vê de todo perdidas, quer Sua Majestade que de Sua parte nada falte; e, ainda que estejam em mau estado e falhas de virtudes, dá-lhes gostos, regalos e ternura que começam a mover-lhe os desejos e até a pô-las algumas vezes em contemplação, ainda que poucas e dura pouco. E faz isto, como digo, porque as prova para ver se, com aquele favor, elas se querem dispor para O gozar muitas vezes. Mas, se não se dispõem, perdoem - ou, para melhor dizer, perdoai-nos Vós, Senhor - que grande mal é que Vos chegueis Vós a uma alma desta sorte e ela se achegue depois a coisa da terra para se apegar a ela. 

9. Tenho para mim que há muitos a quem Deus Nosso Senhor faz essa prova e poucos os que se dispõem para gozar desta mercê. Pois, quando O Senhor a faz e nós não faltamos, tenho por certo que nunca cessa de dar até chegar a muito alto grau. Quando não nos damos a Sua Majestade com a determinação com que Ele se dá a nós, muito faz em nos deixarem oração mental e de nos visitar, de quando em quando, como criados que trabalham em Sua vinha. Mas estoutros são filhos queridos, não os quereria afastar de ao pé de Si; nem os afasta, porque já eles não se querem afastar; senta-os à Sua mesa, dá-lhes do mesmo que come, até tirar o bocado da boca para lho dar. 

10. Oh! Ditoso cuidado, filhas minhas! Oh! Bem-aventurada renúncia de coisas tão pequenas e tão baixas que leva a tão alto estado! Vede o que se vos dará, estando nos braços de Deus, que vos culpe todo o mundo! Poderoso é para livrar-vos de tudo; uma vez que quis fazer o mundo, mandou e foi feito: Seu querer é operar. Pois não tenhais medo que, se não for para maior bem daquele que O ama, consinta que outros falem contra vós; não quer pouco a quem Lhe quer. Pois, porquê minhas irmãs, não Lhe mostraremos nós, tanto quanto pudermos, o nosso amor? Olhai que bela troca dar o nosso amor pelo Seu; vede que Ele pode tudo, e aqui não pudemos nada senão o que Ele nos faz poder. Pois, que é isto que fazemos por Vós, Senhor, nosso Fazedor? É tanto como nada, uma determinaçãozita. Pois se, pelo que não é nada, quer Sua Majestade que mereçamos o Tudo, não sejamos desatinadas.

 11. Ó Senhor! Que todo o dano nos vem de não ter os olhos postos em Vós, que, se não olhássemos a outra coisa senão o caminho, depressa chegaríamos; mas damos mil quedas e tropeçamos e erramos o caminho por não pôr os olhos, como digo, no verdadeiro caminho. Parece que nunca se andou por ele, tanto se nos faz novo. É coisa para se lastimar, por certo, o que algumas vezes se passa. Pois, tocar-se numa pontinha de se ser tido em menos, não se suporta, nem parece que se possa suportar; logo dizem: «não somos santos!». 

 12. Deus nos livre, irmãs, quando fizermos alguma coisa imperfeita, de dizer: «não somos anjos», «não somos santas». Olhai que, embora o não sejamos, é grande bem pensar que, se nos esforçamos, o poderemos ser, dando-nos Deus a mão; e não tenhais medo que falhe por Ele, se não falharmos nós. E porque não viemos aqui a outra coisa, mãos à obra, como dizem; não vejamos coisa em que se sirva mais ao Senhor que não presumamos sair bem dela, com o Seu favor. Esta presunção quereria eu nesta casa, porque faz sempre crescer a humildade: ter uma santa ousadia, pois Deus ajuda aos fortes e não faz acepção de pessoas.

 13. Muito me tenho desviado do assunto; quero voltar ao que dizia,' que é declarar o que é oração mental e contemplação. Impertinente parece, mas para vós tudo passa; e poderá ser que o entendais melhor no meu grosseiro estilo, do que noutros elegantes. O Senhor me dê o Seu favor para isto, amen.


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