CAPÍTULO 40.

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 Diz como, procurando andar sempre em amor e temor de Deus, iremos seguras entre tantas tentações.

1. Pois, nosso bom Mestre, dai-nos algum remédio para vivermos sem muito sobressalto em guerra tão perigosa.


Aquele que podemos ter, filhas, e por Sua Majestade nos foi dado, é «amor e temor». O amor nos fará apressar o passo; o temor nos fará ir vendo onde pomos os pés para não cair em caminho onde há tanto em que tropeçar, como é este em que caminhamos todos os que vivemos. E con isto é bem certo não sermos enganados.


2. Dir-me-eis: como saberemos se temos estas duas virtudes tão gran des, tão grandes? E tendes razão, porque sinal muito certo e determinada não o pode haver; porque se o tivéssemos de ter amor, ficaríamos certos à que estamos em graça. Mas olhai, irmãs, há sinais que parece até os cego vêem; não ficam secretos; e, mesmo que não os queirais entender, ele darão vozes que fazem muito ruído, porque não são muitos os que os tên com perfeição, e assim se notam mais. É como quem não diz nada: amor temor de Deus! São dois castelos fortes donde se faz guerra ao mundo e ao demónios.


3. Quem deveras ama a Deus, todo o bem ama, todo o bem quer, todo i bem favorece, todo o bem louva, com os bons se junta sempre e os favorece e defende; não ama senão verdades e coisa que seja digna de se amai Pensais que é possível, a quem mui deveras ama a Deus, amar vaidades, oi riquezas, ou coisas de deleites do mundo, ou honras, ou tenha contendas ou invejas? Não, que nem pode; e tudo, porque não pretende outra coisa senã, contentar ao Amado. Andam estes morrendo para que Ele os ame, e assar dariam a vida para entender como mais Lhe hão-de agradar.


Que o amor de Deus, se deveras é amor, é impossível que estej muito encoberto. Senão, olhai um São Paulo, uma Madalena: em três dias um começou a dar mostras de estar enfermo de amor: foi São Paulo. A Madalena, desde o primeiro dia; e como o deu bem a entender! Que isttem o amor: há mais e menos; e assim se dá a conhecer conforme a forç que ele tem. Se é pouco, dá-se pouco a conhecer; se é muito, muito; mas pouco ou muito, como haja amor de Deus, sempre se conhece.


4. Mas, do que agora mais tratamos, que é dos enganos e ilusões que demónio arma aos contemplativos, não há pouco: aqui sempre o amor muito - ou eles não serão contemplativos -, e se dá a conhecer muito e de muitas maneiras. É grande fogo, não pode deixar de dar grande resplendor. E, se não há isto, andem com grande receio; creiam que têm bem que temer, procurem entender o que é, orem por essa intenção, andem com humildade e supliquem ao Senhor que não os traga em tentação; que, certo é, não havendo este sinal, eu temo que andemos nela. Mas, andando com humildade, procurando saber a verdade, sujeitas ao confessor e tratando com ele com sinceridade e franqueza, - conforme está dito -, aquilo mesmo com que o demónio pensa dar-vos a morte, vos dará a vida, por mais ciladas e ilusões que vos queira fazer.


5. Mas se sentis este amor de Deus que digo, e o temor que agora direi, andai alegres e sossegadas; pois, para vos perturbar a alma a fim de não gozar tão grandes bens, o demónio meter-vos-á mil temores falsos e fará com que outros também vo-los metam. Já que não pode apanhar-vos, ao menos procura fazer-vos perder alguma coisa, assim como aos que poderiam lucrar muito se acreditassem serem de Deus as tão grandes mercês feitas a uma criatura tão ruim, e julgassem ser isso possível. Parece algumas vezes que esquecemos as Suas antigas misericórdias.


6. Pensais que importa pouco ao demónio meter estes temores? - Não! mas muito, porque causa dois danos, Um, é atemorizar os que o escutam e temem assim de se chegarem à oração, pensando poderem também ser enganados. O outro, é que muitos se chegariam mais a Deus, vendo que é tão bom, - como digo - e que é possível comunicar-se agora tanto aos pecadores, desperta-lhes o desejo da mercê e têm razão que eu conheço algumas pessoas a quem isto animou e começaram a ter oração e em pouco tempo saíram verdadeiros contemplatívos, fazendo-lhes o Senhor grandes mercês.


7. Assim, irmãs, quando virdes entre vós alguma a quem o Senhor as faça, louvai muito ao Senhor, mas não penseis por isso que está segura, antes ajudai-a com mais oração, porque ninguém o pode estar enquanto vive e anda engolfado nos perigos deste mar tempestuoso.


Assim, não deixareis de entender este amor onde o houver, nem sei como se possa encobrir.Aqui na terra, quando amamos as criaturas, dizem ser impossível e que quanto mais fazem por encobri-lo mais se descobre, sendo coisa tão baixa que nem merece o nome de amor, porque se baseia num mero nada. E havia de se poder encobrir um amor tão forte, tão justo, que vai sempre crescendo, que não vê coisa para deixar de amar, assente sobre tal alicerce como é o ser pago com outro amor, do qual já não se pode duvidar, pois está posto à vista tão a descoberto, por tão grandes dores e trabalhos e derramamento de sangue até perder a vida, para que não nos ficasse nenhuma dúvida desse amor? Oh! valha-me Deus! Que coisa tão diferente deve ser o outro amor a quem este tenha experimentado!


8. Praza a Sua Majestade nos dê o Seu antes de nos tirar desta vida, porque será grande coisa, à hora da morte, ver que vamos ser julgados por Aquele a quem temos amado sobre todas as coisas. Poderemos ir seguras do pleito de nossas dívidas; não vamos para terra estranha, mas para a nossa própria, pois é a d'Aquele a quem tanto amamos e nos ama Lembrai-vos, aqui, filhas minhas, do lucro que traz consigo este amor, e da perda de o não ter, que nos põe nas mãos do tentador, em mãos tão cruéis, mãos tão inimigas de todo o bem, e tão amigas de todo o mal.


9. Que será da pobre alma que, acabada de sair de tais dores e trabalhos, como são os da morte, cai logo nelas? Que mau descanso lhe vem! Que despedaçada irá para o inferno! Que multidão de serpentes de toda a espécie! Que temeroso lugar! Que desventurada hospedagem! Pois, se para uma noite mal se sofre uma má pousada, se são pessoas dadas a regalos (como o são os que para lá mais devem ir), que pensais, pois, que sentirá aquela triste alma em pousada que é para sempre, que não terá fim?


Oh! Não queiramos regalos, filhas; estamos bem aqui; tudo é uma noite numa má pousada. Louvemos a Deus, esforcemo-nos por fazer penitência nesta vida. Mas, que doce será a morte para quem já a fez de todos os seus pecados e não tem de ir ao Purgatório! E como até poderá ser que, ainda neste mundo, comece a gozar da glória, não verá em si temor, senão inteira paz


10. Mas já que não chegaremos a isto, irmãs, supliquemos a Deus que, se formos logo receber penas, seja onde, com a esperança de sair delas, as soframos de boa vontade e onde não percamos a Sua amizade e graça, e que no-la dê nesta vida para não andarmos em tentação sem o entendermos.

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