[28 de agosto de 1996]
... EXORCIZAR O DEMÔNIO.
O pensamento não lhe saia da cabeça. Há trinta anos já convivia com ele. Sim, tinha um objetivo muito claro e sabia o porquê de carregar o tinhoso dentro de si, mas já estava cansado daqueles apagões e de acordar no meio de alguma cena de carnificina à la Quentin Tarantino – ou, para ficar no nacional, à la Zé do Caixão.
Procurou o padre Chagas e, após algumas sessões de exorcismo, banhos com água benta e muitas orações, ele foi diagnosticado livre do demônio. Como garantia, recebeu das mãos do religioso um crucifixo de prata com a promessa de nunca o retirar do pescoço.
Duas semanas depois estava com amigos em uma festa junina quando se interessou por uma moça. Não era da região e parecia encantada com toda aquele colorido da festa, as danças e as comidas. Os amigos com quem estava perceberam as olhadas dele e o incentivaram a ir.
Ele hesitou.
Zoaram dele até não poder mais e, já de saco cheio com as brincadeiras, apertou o crucifixo, levantou-se e foi até ela. Eram poucos mais de vinte passos. A garota estava de costas, os cabelos amarrados em um coque; o pescoço lhe lembrava de alguém. Um calafrio despertou seus dois amigos e, por um instante, ele temeu pelo pior.
Estendeu a mão e tocou em seu ombro.
Ela se virou, um sorriso de curiosidade no rosto.
Quando ele soltou a primeira palavra, escuridão.
ACORDOU NO MEIO DO CAFEZAL, A CABEÇA AOS GRITOS. Tornou a fechar os olhos e ficou de joelhos. Ao tornar a abrir, percebeu a noite caída sobre o mundo e a ausência de roupas. Mas, havia algo pior: parecia ter mergulhado seu pênis em uma lata de tinta vermelha – não só ele como toda a região do quadril.
Levantou-se de um pulo e correu o olhar pela estrada de terra.
Nada.
O escuro não facilitava seus objetivos. Só havia um jeito: concentrou-se e afundou...
"Fale comigo."
Silêncio.
"Eu sei que você está aí, porra! Fala comigo."
Suspiro.
"O que você fez dessa vez? Não era ela!"
Sorriso.
"RESPONDE!"
A gargalhada veio tão alta e tão forte ao ponto dele se jogar na terra e apertar as têmporas com as mãos. Contorceu-se por alguns minutos e, quando cogitou a ideia de se matar para fazer aquele riso parar, o bicho respondeu:
"Agora tu sabe quem qui manda aqui, mininu... Minuni num vai se livrá de nóis não. Mininu é mau mas a gente é mais mau! Mininu pensô que cruz ia pará nóis? Mininu burro... Burrinho da peste!"
Ele tateou o pescoço e só então notou a ausência do cordão.
"Cadê o cordão?"
"Pra qui tu quer cruz de santo se tu tem nóis? Nóis faz as cosa funcioná. Santo só fica paradu com cara de bunda.", gargalhou. Os olhos do rapaz se esbugalharam de dor, mas ele resistiu. "Santo num faiz o qui nóis faz... Santo é tudo cuvarde, ah sim... Nóis faz tudo rapidim e cum vuntade... A minina gustô muito... Ah, gustô sim... Inda ficô com a cruz.... Ela gustô da tua cruz... Gustô sim... Gustô tanto qui eu butei bem nu fundo dela. Quandu chega nu ceu é só puxá a curdinha e tirá lá de dentro... "
Não o deixou continuar. Embrenhou-se pelo cafezal sem se importar com os rasgos causados pelos galhos ou pelas pedras nas solas dos pés. Talvez foram horas, talvez minutos, mas, após uma correria sem fim, ela a encontrou: estava deitada de bruços no meio de uma das estradas; os olhos fitavam o negrume entre os pés de café e uma gosma saia de todos os seus orifícios.
"Vai lá... Ela vai gustá de ti vê..."
"O q-q-quê...? Ela está... V-vi.."
"Tá, tá sim. Vivinha da silva... A safada é forte feito uma égua..."
"Por que? Da outras vezes você só me acordava depois de terminar e..."
"PA APRENDÊ QUEM É QUI MANDA NESSA PORRA! Eu mando! Pode rezá, pode chorá, pode tenta tudo o qui tu quisé: eu tô aqui! Tô no escuro te olhando, tô debaxo da tua cama; tô nu teu banheiro quando tu fecha os zoio quando tá nu banho; tô nu espeio... É. Eu tô lá. Quando tu abaxa a cabeça pra cupi eu rio da tua cara e quando tu levanta eu saio... Eu tô atrás de ti agora. De sol e lua, eu tô cuntigu. O mundo é mal e o bem é pôco. Eu tô em toda parte. Eu tô... Eu tô..."
A voz sumiu até sobrar apenas um zumbido no ouvido. Certa vez a avó lhe dissera que, quando a pessoa tem muitos zumbidos, é quando o diabo está tentando entrar na mente – se a mente é fraca, ele entra.
No caso dele, tanto a mente quanto o corpo eram frágeis.
Aproximou-se da moribunda e segurou a ânsia de vômito: um pedaço de galho da largura do pulso saia por entre as nádegas da mulher e ele se lembrou da frase "Gustô tanto qui eu butei bem no fundo dela.".
Sim, estava no fundo.
Empurrado ao máximo.
Até o estômago.
Ao ver a aproximação dele, os olhos dela se arregalaram. A mulher tentou falar alguma coisa. Apenas um chiado saiu, puxado do fundo de sua garganta. Ela agonizava.
— Eu vou dar um jeito... D-Desculpa... Não era pra ter acontecido...
Risos.
Ele vasculhou ao redor e achou uma.
Foi para perto dela e a ergueu.
— V-Vo-Você vai para um lugar melhor. Eu sei que vai.
Bateu com a pedra contra a cabeça da mulher até a transformar em uma massa de sangue, lama e folhas. Enquanto o fazia, um corvo o observava.
Quando voou, seu grunhido lembrou um chamado, como se a ave gritasse...

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Hollow Even
Short StoryCuidado com as vozes que ouve, cuidado com o estranho zumbido... Esse é o conto que retrata o desconhecido de uma forma que você nunca imaginaria. Quem está no controle de suas ações? Fotografia da capa: Steampunked world Autores: Dark Divulga e Hen...