[28 de agosto de 1986]
— ÂNGELO!
A mulher despertou do seu cochilo e logo tratou de chamar pelo neto. Moravam apenas os dois naquela casa rodeada pelo mato. Com a morte da filha, três anos antes, ela decidiu fugir com o menino para longe da barbárie e do burburinho causado pelo caso. Quando o sensacionalismo dos jornais alcançou o ponto de acusar uma criança de sete anos de ter assassinado a própria mãe, Dona Roberta achou por bem se mudar para o interior.
Deu mais uma olhada para o quintal e tornou a chamar.
Não houve resposta.
Esfregou as mãos uma na outra, a irritação chegando a um ponto sem volta. Ângelo sabia bem o quanto aquela teimosia a deixava fula da vida: ela tinha ódio de ser ignorada. Pegou o andador, verificou o nível de força das próprias pernas e se levantou. Saiu para o quintal e varreu o terreno com os olhos. O sol do meio-dia encharcava o ar com o mormaço e fazia sua vista se turvar. O suor escorria como se uma torneira fosse aberta sobre a sua cabeça.
— ÂNGELO?
Vazio.
À uns cinquenta metros, o cajueiro de galhos retorcidos a observava em sua secura de deserto. Roberta esfregou os olhos e franziu o cenho: era impressão sua ou vira um corvo no galho mais alto?
"Preciso é de uma água..."
Virou-se para a casa e teve de se segurar para não cair: parado na soleira da porta jazia o neto. A cabeça baixa e os braços largados ao lado do corpo, o menino estava banhado em vermelho e com penugens grudadas pelo corpo; em cada mão segurava uma galinha morta, o pescoço dos bichos abertos em um talho. Roberta aprumou o corpo e ajeitou o cabelo.
— Â-Ân-Ângelo... O q-que tu tá fazendo? Pra quê essas galinhas?
— Pra alimentá o diabo, vó... O bicho tá com fome...
Roberta se benzeu e abafou o grito com a mão.
— Que tu tá falando, menino? Larga de b-besteira! E pra que tu foi matar as galinha se...
Ângelo sorriu. Não o riso de uma criança de dez anos, mas, sim, a gargalhada de alguém cheio de malícia.
— Eu matei pra mostrá pra ele como eu quiria...
— Queria o q-q-quê...?
— Qui a senhora murresse... – ergueu a cabeça. Os olhos sorriam com um brilho de ternura em direção à avó. Caminhou para frente e a velha se afastou. — Tá cum medo de mim, vó?
— Que brincadeira mais besta, menino! Para com isso!
— Ah, vó... – as mãos apertaram ainda mais o pescoço das galinhas. O corpo do animal da esquerda se desprendeu e ficou pelo caminho, o sangue se misturando à areia do quintal. — Se alembra qui é dia é hoje?
A senhora arfou. Lembrava.
Com detalhes...
Deu com as costas no tronco do cajueiro e olhou para baixo: ao seu redor um círculo de penas tomava o terreno; pedaços de galinhas vomitavam veias e podridão; acima dela, a serenidade daqueles olhos pretos pousados sobre ela foi a sua última imagem antes de descer ao inferno, justo naquele dia; justo no dia do...

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Hollow Even
ContoCuidado com as vozes que ouve, cuidado com o estranho zumbido... Esse é o conto que retrata o desconhecido de uma forma que você nunca imaginaria. Quem está no controle de suas ações? Fotografia da capa: Steampunked world Autores: Dark Divulga e Hen...