Capítulo 2

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Em instantes, o Happy Hour começaria e as mesas do Poe's ficariam abarrotadas de clientes. Era a primeira sexta-feira após o Dia de Ação de Graças e a primeira de dezembro. Embora todos ainda estivessem extasiados por terem reencontrado a família, a proximidade do inverno surgia para frear os ânimos.

A sineta tocou quando a porta do Poe's foi aberta. Levantei os olhos do copo que secava e vi Behatti, minha colega de trabalho, passando pelo portal. Sua entrada deixou uma brisa gelada de outono entrar, fazendo os cristais do candelabro acima de mim balançarem de modo levemente preocupante. Behatti cambaleou até o meio do bar, levada pelo vento, e quase esbarrou em uma das mesas quadradas de madeira. Várias mechas do longo cabelo loiro cobriam seu rosto e a parte de trás da cabeça parecia um ninho de passarinho.

Reprimi uma risada e me agachei atrás do balcão para esconder minha careta, mas meu esforço foi em vão. Behatti limpou a garganta.

‒ Estou te divertindo, ReRe? ‒ perguntou acidamente, jogando o casaco felpudo em cima de mim.

‒ Deu uma boa caminhada? ‒ quis saber, ignorando sua pergunta. Behatti franziu o cenho.

‒ Não, peguei o ônibus. Por quê?

Segurei o casaco com a ponta dos dedos, como se estivesse segurando um saco de lixo cheio de vômito.

‒ Porque isto está fedendo mais do que o Cachaça ‒ provoquei, apesar de o casaco realmente estar um pouco fedorento.

Cachaça era o bêbado que ficava deitado ao lado da caçamba de lixo do lado de fora do bar, sempre com uma garrafa de cachaça na mão. Nós não sabíamos como ele arranjava dinheiro para comprar a bebida, mas também nunca nos atrevemos a perguntar.

Behatti me olhou furiosamente e arrancou o casaco da minha mão. Encostou o objeto no nariz e puxou o ar com força. Fiz questão de encará-la com atenção para ver se percebia alguma mudança de expressão. Nada. Behatti deu de ombros.

‒ Para mim está com o mesmo cheirinho de novo.

‒ E como você saberia disso? Comprou essa bola de pelos no brechó!

Ela ergueu uma sobrancelha de modo ameaçador e girou o casaco no ar, passando--o propositalmente bem perto do meu rosto. A boca tinha formado um biquinho antes de começar sua defesa:

‒ Você sabe de onde é essa "bola de pelos"?

‒ Está surda? Acabei de falar: do brechó.

‒ Da Prada! ‒ bradou. ‒ Isso aqui, querida, é Prada, ouviu? Está vendo essa pelagem? É de um bebê raposa!

‒ Continua sendo do brechó. E fedido. E não acredito que mataram um bichinho tão fofo para fazer um negócio tão horrível.

‒ Horrível? ‒ exclamou afetadamente. Ela por pouco não pulou com garras de urso no meu pescoço.

Eu sempre implicava com suas roupas, mas falar sobre aquele casaco era quase um tabu, e todos no Poe's sabiam disso. Eu tinha acabado de cavar a minha cova. Mesmo na luz baixa do bar, eu podia ver seus olhos vermelhos e as narinas bem abertas. Era isso, eu era uma mulher morta. Contudo, ela se acalmou num piscar de olhos. Lambeu o lábio superior e fechou os olhos, recobrando a postura e me oferecendo um sorriso, o que me deu mais medo.

‒ Bem, não tem como discutir alta costura com alguém que veste moletom e jaqueta de couro o ano inteiro. ‒ Abri a boca para rebater, mas Behatti estendeu a mão e a chacoalhou no ar, de olhos fechados, como se não aguentasse ouvir mais nenhuma palavra. ‒ Por favor, já chega por hoje. Essa conversa me deixou fisicamente cansada.

Sonata à Meia-NoiteOnde histórias criam vida. Descubra agora