Um

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— Cadê você quando preciso?

Me remexo na cama, resmungando.

— Que horas são? — consigo juntar forças para perguntar.

— Hora de acordar e vir me ajudar. Venha, levante logo, preguiçosa! — replica Joanne, com sua voz seca de sempre.

Levanto com uma expressão de sono na cara e vou em direção ao banheiro. Quando termino de fazer a minha higiene básica, num banheiro imundo que me dá desgosto, procuro meus óculos e vejo que não estão mais na cabeceira da cama, onde sempre costumam ficar.

Fox deve ter pego para brincar. Caminho pelo minúsculo quarto e passo pela porta comida por cupins. Grito por Fox, mas não obtenho resposta. Não faz mal, depois o encontro.

Evito ao máximo olhar para as outras crianças que vivem ali. Quando era menor, não conseguia dormir de noite e tive uma série de traumas. É de se esperar para qualquer pessoa, esse hotel parece ter saído de um filme de terror. Com o tempo, fui aprendendo a aceitar essa vida e me acostumei com os barulhos assustadores, os móveis velhos, os cômodos apertados, a imundice do lugar e, claro, as pessoas. Mas algo que nunca consegui suportar era a dor das crianças novas, que tinham acabado de chegar ali. Foram arrancadas de uma vida no mínimo melhor do que a atual e jogadas num quarto, rodeadas por pessoas desconhecidas. Perderam tudo, apenas por serem diferentes. Eu nem ouso olhar para a cara delas, não por egoísmo, mas por medo. Medo de não conseguir me segurar, medo de assustar aquela pobres almas que já levaram sustos demais, medo de voltar a ser que nem elas.

Passo reto por todos os quartos, reparando apenas nos rostos conhecidos. Eu não sei como, mas consigo ignorar todas as pessoas que não conheço, como se só conseguisse ver o que já vi antes. Me fecho para o desconhecido, algo que aprendi com o tempo e não me orgulho nem um pouco. Quando chego na cozinha, o cômodo mais movimentado, esbarro em um homem alto que não estava presente na minha memória.

— Perdão — falo num volume muito baixo, mas sei que ele ouve. Seus cabelos pretos e lisos chamam minha atenção. Mas comparado aos olhos, os cabelos não são nada. Parecem arder com fogo, num tom avermelhado como nunca vi. Reparo que veste um uniforme e logo percebo que ele não mora aqui. Ele não é que nem nós. O homem acena com a cabeça e desvia de mim, seguindo em direção à sala. Mas eu permaneço lá, chocada pela figura que acabara de ver. Uma voz esganiçada me tira do transe:

— Troian! Venha ajudar, não fique parada aí! — Fawn me puxa para perto da pia e me entrega um pano. — Toma. Limpe os pratos.

Faço o pedido, tentando o meu máximo para ao menos fazer os pratos parecerem limpos. Não temos dinheiro suficiente para gastar água lavando louça, mas não adianta passar um pano sujo para tentar tirar a sujeira. Não falo nada, pois já sei a resposta.

— Quem era aquele homem? — pergunto para minha amiga.

— Quem? Aquele de uniforme? — balanço a cabeça, fazendo que sim. — Ah, ele é um dos trabalhadores da companhia de eletricidade. Estava aqui para dar um aviso à Joanne. Nós estamos atrasados 3 meses no pagamento, e se não dermos o dinheiro até Domingo vão cortar nossa energia.

— Ele é um Electro? Veio de Lyght só para nos dar um aviso? — sôo confusa.

— Do que importa para você? — Fawn indaga, pegando discretamente uma maçã no armário superior.

A única vez que vi uma pessoa com poderes na minha vida foi quando eu tinha 8 anos, mas não sabia o que ela tinha de diferente de nós. Ou melhor, o que tínhamos de diferente delas. Eu fui tirada dos meus pais com apenas 1 ano, idade em que os poderes já deveriam ter se desenvolvido. Mas os meus não. Sou uma Neutra, desprezada pelo resto da população e escondida da Cidade Caída junto com os outros que nem eu. Anos atrás, os Poderosos é que eram desprezados, agora tudo mudou. Hoje foi a segunda vez que vi um, e isso me causou uma sensação de choque, libertando minha curiosidade pelo mundo fora daquela casa.

— Tem razão. — tento soar indiferente, mas ainda estou curiosa. Fawn sabe de tudo sobre os Poderosos e não me fala. Há de haver um motivo bom para isso. — Melhor você esconder isso. — aponto para a maçã. — Joanne vai ficar muito brava se ver que você está comendo agora.

Alguns minutos se passam em silêncio, e eu saio da cozinha em busca de alguém que esteja parado. Encontro de primeira.

— Ei, você. — me dirijo a um garoto de aparência jovem sentado numa das caixas que serve de armário.

Ele se espanta.

— S-sim. O que foi? — pelo seu modo de falar percebo que ele não está aqui há muito tempo. Soa assustado, confuso e receoso. Mas ele não é uma criança, deve ter uns 14 anos. Ele deve ter perdido suas habilidades. Pior que nascer sem poderes é perdê-los. Coitado.

— Você sabe onde fica a cozinha certo? — eu digo, e ele faz que sim. — Bom, estão precisando de ajuda lá. Estou com dor de cabeça e preciso achar meus óculos. Você sabe passar um pano não é?

Entrego o pano sujo que usava agora há pouco para ele e ele me olha, como se eu fosse idiota.

— Claro que sei.

— Muito bem.Vá até a cozinha e procure por uma mulher chamada Fawn. Diga a ela que Troian não está se sentindo bem e que você vai assumir o lugar dela. Em seguida, pegue os pratos sujos e passe o pano neles. Não fale mais nada. Entendido? — ele baixa o rosto e eu completo: — Você é novo aqui, não é?

Ele não responde, me olha com uma expressão que diz "socorro" e é o suficiente para mim. O garoto segue para o cômodo lotado que eu tinha acabado de deixar. E lá se vai mais um. Mais um como eu.

Procuro por Fox por todos os lugares, mas não o encontro. Quando avisto Joanne, me aproximo dela e pergunto pelo meu amiguinho.

— Não vi ele. — ela diz, nem se importando em perguntar por que estou a procura dele.

— Não achei meus óculos hoje de manhã e ele deve ter roubado para brincar. Estou com dor de cabeça, não estou vendo bem.

— Ah, querida... — é a primeira vez que ela me chama assim. — Me desculpe, tive que vendê-los. Estamos sem dinheiro e podemos ficar sem luz se... — eu não deixo ela terminar:

— Eu já sei. Mas então o que vou fazer? Preciso dos meus óculos.

Ela não responde, apenas apoia sua mão em meu ombro, para tentar me confortar. Não funciona, mas eu tenho que deixar para lá. São só óculos, eu posso aprender a viver sem eles. Me afasto lentamente dela e começo a andar. Vou procurar alguém que precise de ajuda ou algo que eu possa fazer. Não posso ficar parada. Não posso voltar para a minha cama e deitar. Não posso sequer fechar os olhos. Por mais que eu queira, não posso.

Os Filhos RenegadosWhere stories live. Discover now