Uma conversa muda.
O almoço foi encerrado ali, não que houvesse alguém satisfeito com a comida, senão porque uma palavra precisava ser dita; alguma coisa necessitava acontecer para colocar as nossas vidas novamente nos trilhos.
Como sempre, foi minha mãe quem tomou a palavra.
Fez aquele seu gesto costumeiro com as mãos a encobrir o rosto e escorregá-las para trás, como que separando em duas partes, a longa cabeleira negra, revelando um alvo couro cabeludo.
Ela iniciou o monólogo me chamando pelo meu nome. Isso fez-me gelar a espinha, porque, como acontece numa situação rotineira, chamar-me pelo nome, e marcadamente pelo acento tônico no é, Clem-én-te, era sinal de confusão!
Fui obrigado a sair de meu esconderijo de mim mesmo e tive de ocupar o mesmo tempo-espaço de minha mãe desde que aquilo tudo havia começado.
Vi minha mãe com o rosto e os olhos vermelhos e as mãos calmamente depositadas sobre a mesa, ligeiramente afastadas do prato e mais alguns outros movimentos característicos de quando ela tinha de falar alguma coisa muito séria para mim.
Tudo isso só fazia aumentar a minha confusão de sentimentos: era um medo misturado com ansiedade e mais ainda um não sei o quê de não me lembrar do que eu havia aprontado.
Novamente o som do silêncio.
-x-x-
Foi assim que eu entrei na vida.
Sem um aviso prévio, mamãe tomou a palavra e começou a murmurar coisas das quais eu não entendia. Só fui entender a partir de:
"... foi quando ainda eu era só a Teinha da Zilda, pois era assim que era conhecida lá na Paraíba. Não sei se você sabe, mas nós éramos muito pobres, na conta de mainha não ter condições de levar adiante os seus bacorinhos; meu pai, vendo que a filharada não parava de brotar, caiu na caatinga no caminho de uns jegues e nunca mais retornou...".
Foi nesta pausa de respirada que mamãe fez, é que pude sair de meu estado de tensão e pude relaxar, mesmo porque mamãe apenas disse o meu nome, mas não prosseguiu com o sobrenome, porque significaria encrenca na certa.
Ao contrário disso, mesmo que eu estivesse olhando para ela, eu olhava para além dela, sem delinear as suas formas.
Eu que achava que minha mãe estava em posição de ameaça, aos poucos fui recobrando a figura dela ali na minha frente: uma mulher forte e testada pela vida, falava agora de sua infância, coisa até então desconhecida por mim.
Espantosamente, ela não falava com tristeza por ter sido pobre, nem tampouco com raiva de o pai tê-la deixado muito cedo; ela falava como uma lição aprendida, às duras penas, mas que lhe serviu de esteio para se moldar na vida que construiu.
E eu fiquei divagando sobre as palavras duras de minha mãe.
-x-x-
Desgraças vêm aos montes.
Enquanto eu pensava, eu olhava para mamãe a fim de ler nela alguma informação não dita, mas foi aí que ela retomou...
"Mainha mais eu nos juntamos para cuidar dos pequenos. Enquanto ela saía para trabalhar de 'ameio' para os vizinhos e trazer algum mantimento para casa, eu cuidava da família.
Cuidava de tratar do jegue, com o qual eu ia à cacimba para abastecer o tambor e as latas disponíveis da casa; preparava os angus e as merendas para os meninos pequenos e quando sobrava alguma coisa, eu esperava mainha às tardes para ela mais eu comer aquela comidinha dormida.
A vida era difícil. Ficou mais difícil ainda quando o Zezo, um dos pequenos, caiu doente e mainha tinha de levá-lo até o doutor que atendia por senha na casa paroquial da cidade.
Ela enrolava o bichinho num cobertor e saía antes das galinhas acordarem e só retornava com o fim do sol.
Foi aí que as coisas apertaram e eu comecei também a ficar ruim de saúde. Eu era a mais velha da casa, mas isso não significava muita idade. Somente era a idade dos dentes ficarem de porteirinha".
-x-x-
É tudo isso que lembro de minha mainha.
Enquanto mamãe falava eu ia formulando um filminho em minha cabeça.
Vi minha mãe rodeada de irmãozinhos em uma casa pobre, um jegue amarradinho lá fora, uma sequidão ao redor da casa, e um amontoado de latas cheias de águas avermelhadas, esperando decantar as partículas mais pesadas, para servir ao almoço, ao banho e matar a sede.
Foi neste ínterim que fui puxado de volta ao relato de minha mãe.
"Nós vivíamos com as ausências de mainha, em razão das muitas idas e vindas do centro de saúde que ficava na casa paroquial da cidade, até que um dia, e eu não sei ao certo, o Zezo não voltou mais. Mas nem deu para ela descansar, porque aí era eu que estava sobrando em ossos em pouca carne.
Eu não me lembro muito desta fase, ou de quanto tempo passei lá no doutor, porque quando mainha me vinha visitar, dizia que tinha de ficar lá e que era para eu ganhar corpo logo e voltar para casa.
As coisas iam bem até que as visitas dela começaram a rarear.
E mesmo eu sendo pequena, notei que também ela ia sumindo dentro daqueles vestidinhos de uma só cor, marrom como eram seus braços, pernas e os ossos do rosto. Na cabeça, trazia sempre uma trouxa equilibrada numa rodilha feita de fralda gasta pelo tempo.
Foi assim que mainha foi sumido... sumiu todinha e com ela, as minhas raízes e endereço de volta".
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URSINHO QUE FAZ CHORAR
RomanceO que poderia de acontecer de inusitado em um almoço? Tudo! Inclusive saber sobre a vida secreta de sua mãe. Assim é o enredo deste romance, que parte de uma cena comum de uma família na hora do almoço. A partir de um achado, entocado no fundo de...